sábado, 23 de julho de 2016

GOL DA ALEMANHA



Numa quadrinha minúscula - uns cinco metros de comprimento - improvisada na frente do portão principal do estádio do Pacaembu, linhas laterais e de fundo desenhadas imaginariamente, golzinhos móveis montados, dois garotinhos corriam atrás de uma bola murcha. Pelada disputadíssima, com dribles, carrinhos, caneladas, muita catimba e resmungos. 'Você só faz falta!'. 'E você só reclama'. Nenhum dos dois queria perder. Palmeiras x Corinthians? Santos x São Paulo? Nada. Era um clássico internacional, talvez mata-mata da Copa dos Campeões da Europa. Um dos garotos vestia a camisa do Milan; o outro, a do Paris Saint-Germain. As respeitadas escolas italiana e francesa duelando, cinco títulos mundiais em campo. 

Já no auditório do Museu do Futebol, abrigado no mesmo Pacaembu, quem deu o tom da conversa neste sábado, 23 de julho, foi o badalado e não menos poderoso futebol alemão (quatro conquistas mundiais), em duas mesas de debates que marcaram o lançamento, no Brasil, do livro "Gol da Alemanha" (título original 'Franz, Jürgen e Pep'), escrito pelo espanhol Axel Torres e pelo germânico André Schön. Na obra, os dois autores, amparados por refinada pesquisa, trocam impressões e conversam animadamente sobre as transformações vividas pelos clubes e pela Seleção da Alemanha nas últimas duas décadas, até a conquista da Copa do Mundo de 2014. "Prepare-se para uma viagem no tempo ao lado de Franz Beckenbauer, Gerd Müller, Jürgen Klinsmann, Thomas Tuchel, Ralf Rangnick, Jürgen Klopp, Pep Guardiola e muitos outros", anuncia a apresentação à edição brasileira.

A constatação de que esse renascimento deve-se fundamentalmente a uma mentalidade e um projeto que foram coletivamente desenhados e implementados não impede que "Gol da Alemanha" reconheça também que, em grande medida, o rencontro alemão com o sucesso e o protagonismo boleiro precisa ser creditado a um protagonista específico, figura-chave responsável pelas transformações: Klinsmann, ex-atacante do Bayern de Munique e da Seleção, treinador da Alemanha na Copa de 2006 e atualmente técnico dos Estados Unidos. "Ele quebrou paradigmas", afirmou o jornalista Gerd Wenzel, da ESPN/Brasil, em um das mesas realizadas no Museu. Wenzel lembrou que, quando foi contratado para treinar a seleção, em 2004, Klinsmann sofreu muitas críticas, porque havia outras boas opções no mercado. "O salto de qualidade dele foi ter se cercado de uma equipe altamente competente, na preparação física, de goleiros, abrindo ainda a possibilidade de adequar o jogo de acordo com o adversário. A partir dele, o técnico deixou de ser o todo-poderoso que tomava decisões sem consultar mais ninguém. Nascia ali o novo futebol alemão, de muita intensidade e trocas rápidas entre defesa e ataque, que não era mais só carrancudo ou mecânico e disciplinado", completou.  

O jornalista da ESPN/Brasil elogiou ainda a firme e convicta atuação de Klinsmann para vencer as resistências da torcida alemã a jogadores imigrantes que poderiam atuar pela Seleção. Não foi um processo suave nem tranquilo. Um choque de culturas explodiu. Os clubes não estavam inicialmente muito dispostos a aceitar a mistura, as torcidas reagiram de forma intensa contra a miscigenação. "Foi aí de novo que entrou o Klinsmann, brigando a todo instante contra essa mentalidade, dizendo que não era necessário apenas tolerar, o que é muito pouco, mas conviver com todas essas culturas e estilos no futebol, inclusive dentro de campo. Gradativamente, os estrangeiros foram futebolisticamente integrados", reforçou. Atualmente, o turco Özil, o tunisiano Khedira e o ganês Boateng são alguns dos destaques e ídolos da seleção alemã.     

Depois dos títulos mundiais de 1990 e da Eurocopa de 1996 (já visto muito mais como fruto da sorte do que do talento), sinais evidentes de que o futebol alemão havia parado no tempo e perdido o rumo surgiram com a desclassificação para a Croácia (derrota por 3 x 0) nas quartas-de-final do Mundial de 1998 e, principalmente, com o fiasco na Euro de 2000, quando foi eliminada já na primeira fase, tendo ficado em último lugar no grupo. "Até ali, estavam acomodados. Bem ou mal, ganhavam títulos, a moeda era forte, podiam comprar jogadores, os clubes não se preocupavam com as categorias de base. Com a desclassificação em 2000, a ficha caiu. Entre 2002 e 2014, foram construídos 52 centros de excelência na formação de novos atletas, diretamente ligados às escolas. A Alemanha tem atualmente 1.300 técnicos profissionais, atuando em tempo integral, trabalhando apenas com as jovens promessas. São mais de 25 mil clubes de futebol em funcionamento e 15 mil atletas, diversas categorias, registrados na federação. A premissa era clara: se houver um bom jogador perdido ou esquecido num vale ou nas montanhas, vamos encontrá-lo e formá-lo. Uma das exigências da Liga alemã, aliás, é o investimento em novos talentos", resgatou Leonardo Bertozzi, comentarista da ESPN/Brasil, durante o lançamento do livro. A média de público da Bundesliga, aliás, é a maior do mundo: quase 43 mil torcedores por jogo. 

Para João Paulo Medina, da Universidade do Futebol e que também participou do evento realizado no Museu, a mudança no futebol alemão aconteceu não apenas por conta de investimentos feitos em gestão, mas principalmente a partir da compreensão de que era preciso mudar o comportamento dos jogadores em campo. "Gestão não é apenas governança administrativa. mas também técnica, de estilo, como a gente deseja ver o time atuando. Hoje, países como a Islândia, com 300 mil habitantes, fazem um trabalho de preparação técnica muito mais qualificado do que aquele que é feito no Brasil", comparou. Para ele, não se trata de copiar e transportar para cá o chamado modelo de sucesso alemão, mas de buscar inspirações nas lições que os germânicos podem nos oferecer, em direção às nossas mudanças singulares.  Gustavo Vieira, gerente de futebol do São Paulo, completou o raciocínio destacando que os brasileiros ainda nos apegamos a um sentimento de identidade muito incentivado durante a ditadura militar, um "somos os melhores e sabemos fazer" repetido à exaustão, o que acaba por consolidar a concepção de que seríamos imbatíveis, eternos melhores do mundo, por inércia, e que as dificuldades atualmente enfrentadas seriam apenas momentâneas e serão naturalmente superadas. "Não é verdade. Precisamos construir objetivos e dizer o que queremos do futebol brasileiro no longo prazo, para cuidar e formar tecnicamente os talentos que temos e diminuir as distâncias que hoje nos separam dos países europeus". 

No livro "Gol da Alemanha", a tragédia do Mineirão, o histórico 7 x 1, é narrada em pouco mais de uma página. Nada além disso. "Fico constrangido em dizer isso, mas, para os germânicos, passou", reconheceu Wenzel. Segundo ele, a Alemanha já se debruça a analisar desafios que surgiram após a conquista do quarto título mundial, como o ritmo dos treinamentos e a intensidade com que passou a atuar a seleção (seriam responsáveis por frequentes contusões musculares dos boleiros?), além de procurar alternativas para substituir jogadores que estão se aposentando. "Estão mirando o futuro. Não é mais a Alemanha de 2014", concluiu.     

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