segunda-feira, 9 de novembro de 2015

OBJETIVIDADE FUTEBOLÍSTICA

É um dos primeiros conceitos discutidos no curso de Jornalismo. Objetividade. Mantenha a neutralidade e a imparcialidade, busque sempre A verdade, sugerem os mais puristas, como se fosse possível a um sujeito que narra as histórias do tempo presente esvaziar-se de todas as suas percepções e registros de mundo para se isolar numa redoma de vidro, inodora, incolor e insípida, impenetrável e higienizada, para dali apenas relatar assepticamente o que vê. Mas nossos olhos não são também filtros? E como exigir que um ser humano embriagado por experiências e sensibilidades atue como uma máquina, um robozinho? 'São os idiotas da objetividade', contestaria mestre Nelson Rodrigues. Nas brechas desse discurso, aparecem professores às vezes tidos pelo mercado como rebeldes e mais sintonizados com a complexidade do mundo contemporâneo - que não cabe mais num relato gelado e puramente técnico - para sugerir ponderações, nuances, cinquenta tons de cinza entre o branco e o preto, equilíbrio, transparência e honestidade. A notícia como a melhor versão possível da realidade.
Inevitável. Sempre que preparo essa aula, questionando a neutralidade da verdade e sugerindo o equilíbrio da melhor versão, fico me imaginando repórter de campo de uma rádio, escalado para cobrir final de Copa do Mundo no Maracanã contra a Argentina. Vamos esquecer o oito de julho de 2014, por favor. Não houve Alemanha. Tomo posição atrás dos bancos de reservas. O eterno Mário Filho está lindo, colorido, abarrotado, urrando em festa de esperança. O jogo é duríssimo. Não tenho mais unhas. Numa bola perigosa do Brasil, que passou triscando o pé da trave direita hermana, o fone de ouvidos ganhou vida e saiu voando. O narrador estranhou os ruídos esquisitos. Meus lábios estão feridos. De tanto andar dois metros para lá, dois metros para cá, segurando o microfone, acabei desenhando uma trilha, linha retinha, na área da imprensa. Numa das minhas entradas para dar informação sobre substituição, os argentinos explodiram petardo no travessão do Brasil. Quase soltei um palavrão cabuloso, ao vivo. Segurei na garganta. A galera respondeu cantando ainda mais alto. Ainda bem, não era "com muito orgulho e com muito amor". O som do Maraca ensandecido seria capaz de abafar as conversas da minha família em festas de aniversários e de pulverizar os gritos de guerra dos godos, ostrogodos e visigodos, na iminência de invadirem o Império Romano.
Eu cantava junto. Baixinho. Tudo bem, reconheço, não muito. E no finalzinho da partida, quando já imaginava ver prorrogação e pênaltis ajoelhado, numa bola espirrada na área e mal rebatida pelo zagueiro hermano, Neymar entrou dividindo. De carrinho (até pensei em escrever sobre mais uma pintura do menino-gênio, sei lá, um chapéu, um voleio, dribles enfileirados... mas acho que um gol feio seria mais bonito, nesse caso). Só consegui ver a pelota cruzar a linha. Dei três cambalhotas para lá, outras três para cá, naquela trilha já traçada. Terminei com um peixinho, deslizando, braços abertos, indo parar bem perto da arquibancada, quase na grade de proteção, onde um mar de torcedores comemorava com o camisa 10 da Seleção. Deu tempo de ouvir o final do 'goooooooollllllll' narrado pelo locutor. Ainda deitado, dei os detalhes do lance, o que só eu tinha visto. Arfando. Quando o professor árbitro apitou o final da decisão, arranquei a camisa da rádio e deixei à vista a da Seleção. Corria sem rumo pelo gramado. Aparvalhado. 'É hexa, é hexa, é hexa...", berrava. Pulava com o microfone na mão, no embalo das comemorações dos jogadores, tentando entrevistá-los. O locutor pediu que me acalmasse. "Vai ter um piripaque". Minha resposta: "fulano, isso não é um tribobó da serra versus caixa prego qualquer. É final de Copa do Mundo!". Êxtase. Imaginar como seria meu comportamento se fosse um Santos campeão da Libertadores contra o Corinthians? Consigo. Voltem o filme. As mesmíssimas cenas e roteiro, só que ainda mais tensas e dramáticas, com as devidas adaptações: a camisa alvinegra praiana por baixo e o "é tetra" no final. Tirem as crianças da sala.
Quando volto à realidade mundana, dou risada e penso com meus botões - há mais mistérios entre a atuação de um repórter de campo torcedor do Santos e da Seleção em dia de final e a objetividade da sala de aula do que imagina a vã Filosofia do Jornalismo.

Nenhum comentário:

Postar um comentário