segunda-feira, 2 de novembro de 2015

DE ONDE VEM ESSA MALUCA PAIXÃO?

Vem desde antes de eu nascer. Dos chutes de primeira na barriga da minha mãe. Dos sonhos inocentes que já tinha com futebol enquanto era aconchegantemente protegido pela placenta e alimentado pelo cordão umbilical. Vem da primeira bola que ganhei, molequinho de tudo, ainda aprendendo a andar e a chutar. Do uniforme cinza de goleiro tão desejado, com luvas e joelheiras, que chegou naquele Natal dos meus cinco anos. Sim, fui arqueiro quando criança. Por pouquíssimo tempo. Não demorei muito para descobrir que minha bola era outra. Essa paixão tresloucada surge de modo incontido graças àquelas peladas que eu jogava sozinho no terraço estreito e comprido da chácara da minha querida São Bernardo do Campo de tantas lutas políticas, correndo atrás de uma pelota dente de leite, oval e murcha, imitando voz de locutor para narrar partidas épicas, inesquecíveis. E que golaaaçççooo!!!! Ela ficou pedindo me chuta, me chuta, ele encheu o pé! É culpa das bolas de meia, bolas de gude. Das bolinhas de tênis. De papel. Das tampinhas. Dos potinhos de iogurte. Das latinhas e garrafinhas de refrigerante. Tudo era bola. A gente chutava o que viesse pela frente. Num arroubo infantil de empolgação, bica sem medir a força, meu sapato (que não tinha cadarço) saiu voando. Só parou na vidraça da sala da diretoria na escola. Cacos espalhados. Meus pais foram chamados. Encanto que vem das caneladas e disputas heroicas com os primos Bicudinhos no quintal em ladeira e cheio de árvores ardilosas da casa de meus avós paternos em São Paulo. Daquele primeiro título paulista que comemorei, em 1978. Os primeiros Meninos da Vila. Da Copa de 78, na Argentina. Nelinho, Amaral, Batista, Zico, Roberto Dinamite, Dirceu. A batalha de Rosário contra a Argentina. A farsa da seleção peruana, que tomou de seis para colocar os hermanos na final. A ditadura sangrenta no país vizinho. Nos países vizinhos. Amor sublime e cego que explode graças à mágica Seleção de 1982, do mestre Telê Santana. Arte pura. Cerezo, Falcão, Sócrates e Zico. Jamais haverá meio-de-campo como aquele. Nunca mais. Do choro doído e inconformado imposto pelo italiano Paolo Rossi. Três gols. Brasil desclassificado. O que faço agora? Reforço a paixão ouvindo as histórias que meu avô materno narrava sobre Pelé e o único e absoluto Santos da década de 60. Orgulho que nem todos podem ter. Revela-se forte e implacável nas sístoles e diástoles aceleradas um sentimento que recorda o sangue escorrendo do joelho ralado no chão de ladrilhos vermelhos da escola. a canela roxa atingida pelo bico da chuteira do desleal adversário no torneio interclasses, a calça rasgada do uniforme (a bronca da mãe), o dedão do pé direito (sou destro!) quebrado e a distensão na coxa que escondi do técnico do time para poder disputar torneios contra outras escolas (mesmo manco), as pernas em brasa lanhadas nos campos de terra. É amor desmedido que lembra os clássicos jogos de botão no estrelão (meu Santos de acrílico era imbatível), o pênalti que bati na tabela de basquete numa final de campeonato (salão, não botão), as partidas que acompanhei com ouvido colado nos meus vários e queridos companheiros radinhos de pilha, os terceiros tempos invadindo as madrugadas, o dizer para a namorada 'espera só mais um pouquinho, está terminando o jogo' ou 'amanhã não dá, é dia de Santos', as aulas que matei em diferentes séries para ouvir ou ver amistosos da Seleção. Vem dos estádios, do cimentão das arquibancadas da Vila Belmiro, do Pacaembu, do Morumbi, do Canindé, do Parque Antártica, da rua Javari, da Comendador Souza. É tão forte a paixão tresloucada que foi capaz de sobreviver à seca de títulos da Seleção, ao Brasil do técnico Sebastião Lazaroni, aos dezoito anos de fila, das vacas magras e de times medonhos do Santos. Para explodir novamente, desavergonhadamente com os gols de Bebeto-Romário, Rivaldo-Ronaldo-Gaúcho, Giovanni, Robinho-Diego, Neymar. É paixão pelo drible. Pelo improviso. Pelo inesperado. Pela ginga. Pela malemolência. Pela malícia. Pela delícia de uma bola debaixo das canetas. Pelo chapéu. Pelo voleio. Pelo sem-pulo. Pela bicicleta. Pelo cruzamento milimetricamente feito, na cabeça do atacante. Pela meia-lua. Pelo drible da vaca. Pelo rolinho. Pela pedalada. Pelas improvisadas e impagáveis mesas-redondas com os amigos num bar, cerveja gelada e sem hora para acabar. Pela coleção de camisas. Pelas crônicas de Nelson Rodrigues. Pelas memórias de uma Copa no Brasil. É amor que me faz acompanhar os jogos da série A. Da B também. E da C, por que não? Partidas da D. Da série Z. Não existe? Inventemos já. Estaduais. Regionais. Várzea. Desafio ao Galo. Campeonato italiano. Espanhol, inglês, russo, argentino, mexicano, francês, português, holandês. Libertadores. Liga dos Campeões. Liga dos Perdedores. Liga dos Mais ou Menos. Qualquer liga. É paixão que obrigou a me virar nos 30 (ou nos 43) para acompanhar o maior número de jogos da rodada do último final de semana. Quando acaba, já começo a suar frio, síndrome de abstinência, e a pensar na do próximo final de semana. Cansa? Nunquinha. É eterna paixão imortal. Esclareci sua dúvida? Ave, futebol.    

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