sábado, 17 de outubro de 2015

BRIGA EM FAMÍLIA

Não há racionalidade num torcedor de futebol. O mesmo decreto inglês (ou chinês? Há controvérsias) que criou o ludopédio, definindo as regras do esporte, determinou também por tabela que espasmos de tensão, estados de espírito fortemente alterados e reações escalafobéticas e estapafúrdias acompanharão comportamentos boleiros, sempre que a redonda rolar (e até mesmo quando ela estiver descansando). Que o digam a mesa da minha sala, amistosamente esmurrada, e a porta de entrada do apartamento, graciosamente chutada em tardes ou noites de jogos do Santos. Os vizinhos já se acostumaram aos palavrões. Nem ligam mais. Acho até que se divertem. Suspeito que tenham anotado alguns impropérios novos em seus caderninhos. Acho que ouvi alguns deles em serenas reuniões de condomínio. Controles remoto da TV a cabo? Já quebrei - e troquei - um montão. Até óculos entortei e esmaguei, numa disputa em que perdemos a vaga na final aos 48 do segundo tempo. Fiquei estatelado no chão por mais de meia hora, imóvel, mudo, no escuro, ao final da partida. No estádio, não há perdão para um bandeira que marca impedimento inexistente. Para árbitro que anula gol legítimo. Para atacante que erra gol feito. Para chinelinho que faz corpo mole e não corre. Para técnico que faz substituição errada. Para torcedor novato e virgem de arquibancada que senta a seu lado e, no lance decisivo, resolve puxar papo e discutir a má campanha do time. O campo, Luiza e Daniel sabem, é território livre do palavrão. Assim ficou combinado. Os amigos que me conhecem de longa data preferem não cutucar a onça. Dizem que me transformo, que as expressões de meu rosto mudam. Fico transtornado, garantem. Outro Chico. Uma amiga muito querida já me disse, não uma só vez, que não entende como um sujeito racional, controlado e cerebral como eu pode se deixar abalar tanto por um mísero jogo de futebol. É que é... futebol. Sinto muito. Jamais vou conseguir convencê-la de que não tem jeito. No futebol, vísceras cantam e batucam mais alto que neurônios. O coração acompanha o ritmo. Além do mais, sou ariano. Torto. Dia desses li num desses precisos e rigorosos testes de facebook que mesmo o cérebro de um ariano é muitas vezes regido pelas batutas dos instintos mais primitivos. É mais forte que eu. Os conhecidos menos chegados, sem muitas intimidades e não acostumados às explosões, invariavelmente deixam escapar um perplexo "você fica assim com o Santos? Com a Seleção? Sobe em mesa de bar para torcer? Não acredito. Não consigo imaginar você nesse estado!". Não tenham medo. Podem continuar por perto. Sou bonzinho. Sou normal. Continuo comunista, mas não como criancinhas batidas no liquidificador. Já fui para Cuba, sem ninguém precisar me  andar. #ProntoFalei. Para o pobre torcedor, há ressacas mais longevas (perder de goleada ou clássicos é osso duro de engolir). Outras são quase instantâneas (derrota quando a classificação já está garantida). O fato inexorável, amigos boleiros, amigas boleiras, é que tudo passa. A crise econômica vai passar. O mandato da Dilma vai passar, em 2018. O Eduardo Cunha vai passar (sei não). O transe provocado pelo futebol sempre passa. A única coisa que não passa é a vontade de ser presidente a qualquer custo do Aécio. E do Serra. São os pontos fora da curva. Exceções que confirmam a regra. Aos que se preocupam solidariamente com meus ataques e minha saúde, minha gratidão. E uma convicção, para tranquilizá-los - mesmo no máximo do descontrole, no auge dos xingamentos, no ápice do diálogo com o fígado, nunca, nunquinha me meti ou me envolverei em brigas de futebol. Nesga de lucidez sempre resta. Recorro a ela. Tudo bem, há a rusga numa mesa de bar, a discussão por telefone, uma provocação nas redes sociais. Depois a gente resolve com abraço, carinho e cerveja. Rivalidade. Ficamos nisso. Jamais violência. Abomino a selvageria da força bruta, qualquer circunstância. Já corri de confrontos entre organizadas. Piquei a mula e me escondi atrás de banca de jornal quando a cavalaria da sempre bem preparada Polícia Militar paulista apareceu descendo o sarrafo em quem viesse pela frente deles. Ajudei a formar cordão de proteção para a entrada de torcedores adversários na Vila Belmiro. Separei porrada em arquibancada. No currículo boleiro de mais de 40 anos que tanto me orgulha, para não mentir, apenas um cartão amarelo, uma advertência leve por "ter chegado às vias de fato movido pela maldita bola". Foi em casa. Briga com meu irmão. Também santista. Motivo - um jogo do Santos. Contra o Guarani. No estádio Brinco de Ouro. Campeonato Paulista de 1997, dia 19 de fevereiro, noite abafada de uma quarta-feira. Eu já estava formado, quase casado. Ele estava terminando a faculdade, dois anos mais novo. Eram os tempos das vacas magras, o Santos não ganhava nem disputa de par ou ímpar. O time era pavoroso. Comecei vendo a partida sozinho, pela TV, conformado com mais um fracasso alvinegro. Até saímos na frente. Nem resmunguei quando o Guarani empatou. Marcamos o segundo. Seguramos o resultado até os 40 do segundo tempo, o time de Campinas com um a menos em campo. Pensei, é hoje, vitória fora de casa, coisa linda. Vou até abrir uma breja e comemorar. Ouvi o barulho da chave na fechadura. Calafrios. Meu irmão nem tinha chegado na sala, o corredor de entrada era longo. Gol do Guarani. Empate. Falei nada. Fuzilei com o olhar. Pelos códigos boleiros que nos unem umbilicalmente, ele sabia perfeitamente que eu estava dizendo, com raiva, 'porra, por que não esperou o jogo acabar para voltar? Estava dando tudo certo". Não deu tempo dele sentar no sofá. Gol do Guarani. Virada em três minutos, a cinco do final do jogo. Explodi. "Cacete, que puta pé frio! Pé gelado! Conseguiu fazer virar um jogo que estava ganho! Sai daqui! Vai embora porque a gente ainda vai perder!". Não vimos o final da peleja. Só depois fui confirmar que tinha acabado mesmo 3 a 2 para o Bugre. Não lembro a sequência exata. Acho que o que veio em seguida foi assim. Meu irmão, de terno e gravata (eu de pijama), avançou com fúria na minha direção. Tentou me acertar um soco. Uma voadora. Decidi entrar de vez naquela esparrela. Nos atracamos e começamos a rolar pela sala. Derrubamos banquinhos e cinzeiros, esbarramos em mesinhas de canto e de centro, demos cabeçadas no chão. Eram chutes, murros e pernadas para todos os lados. Esbaforida, sem saber o que fazer, minha mãe só conseguia pedir 'parem, por favor, parem. Vocês vão se machucar'. Encarecidamente. Maternalmente. Meu pai, que já dormia (era quase meia-noite), tentou controlar o enrosco com berros do quarto, Adiantou nada. Desafiamos. Éramos duas bestas feras desferindo sopapos. Minha irmã dormia o sono dos anjos. Nem se abalou. Chegamos rolando ao quarto, abrimos a porta com coices, o cabideiro coalhado de roupas foi ao chão. Quem tentou agir como pacificador foi meu irmão mais novo. Acordou assustado, todo descabelado, desceu aparvalhado do beliche e tentou tomar pé da situação, meio babeta: 'o que está acontecendo?'. Olhos ainda quase fechados, colocou uma mão no meu peito, a outra no ombro do irmão briguento. Tentou nos afastar. Saiu faísca. Virou o alvo. Levou porretada dos dois. 'Não se meta'. Voltou rapidinho e esbaforido para a cama. 'Imbecis. Vou dormir. Vocês que se resolvam'. Deitou, cobriu-se e apagou. A quebradeira só teve fim quando meu pai apareceu na porta. Só precisou pronunciar um 'chega. Agora'. Os exércitos recuaram, internamente jurando revanche e segundo tempo, talvez prorrogação e cobrança de pênaltis. Disputa num outro torneio. Os vizinhos nem ousaram reclamar da algazarra. Além de general das tropas do apartamento 61 da saudosa rua Lisboa, meu pai era sub-síndico. Respeitadíssimo. Acho que fiquei uma semana sem falar com meu irmão. Uns dois jogos do Santos, vimos em cantos distantes. No terceiro, já estávamos juntos, como sempre foi, rindo e xingando o time em uníssono. Sempre fomos parças alvinegros da Vila, na alegria e na tristeza. A história da briga - desvio único de conduta - faz parte do folclore da família. Quando nos encontramos para mesas-redondas com rodadas de cerveja, lembramos e rimos do episódio bizarro. Claro que nos arrependemos. Patético. Infantil. As versões, no entanto, permanecem diferentes. 'Você me ofendeu', ele alega. 'Você veio para cima de mim, Só me defendi', respondo. O pé frio naquela noite? Nem ele nega. Sai, zica! Pega aí a cerveja gelada. Um brinde.                    

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