domingo, 5 de abril de 2015

VAI PARA CASA, MURICY

Muricy Ramalho anda triste. Cabisbaixo. Macambúzio. Abatido. O bordão "aqui é trabalho", repetido à exaustão em temporadas tão vitoriosas e regadas a largos sorrisos e títulos, Paulistas, Brasileiros e Libertadores, faixas no peito e taças erguidas, foi substituído por um sussurado, envergonhado e cinzento "deus deu resignação a meu pobre coração", nos versos tocantes da dança da solidão do príncipe Paulinho, o portelense da Viola. Parece ser a saúde, debilitada. Dores fortíssimas na coluna, arritmias, picos de pressão, diverticulites. O corpo dói, faz calar a alma, trava a vontade de levantar do banco e gritar na beira do gramado. Muricy passa as partidas, as decisivas e as enfadonhas que só servem para cumprir tabela, mascando chicletes, mão no queixo, expressão impassível, a mirar o infinito, bonezinho na cabeça, talvez ruminando o que faz ali naquele perrengue sem fim e por que não está curtindo a vida com a família no sítio em Ibiúna, interior paulista. O treinador tricolor nem mais enfrenta como uma onça arisca e pronta para dar o bote certeiro na jugular as perguntas lançadas aos borbotões em entrevistas coletivas. São falas sem sal, frases feitas e prontas, um tal de 'futebol é assim, tem dessas coisas, a fase é ruim, os caras não conseguem jogar', sem tempero, sem graça, nem de longe a lembrar as tiradas engraçadas e ranzinzas, às vezes até resvalando na truculência desmedida, de outros campeonatos e temporadas. Em campo, o São Paulo é um time espelho de seu treinador. Ou seria o contrário? A dúvida é tostines fresquinho, o ovo ou a galinha - o tricolor não joga porque, apertem os cintos, o técnico sumiu, ou o treinador não está nem aí mesmo porque sacou que tem boi nessa linha boleira e tudo o que ele disser ou fizer será mesmo desgastante e improdutivo? Os dois, talvez. Lá e cá. Mistura dialógica explosiva. O fato, amigos e amigas da bola, é que, como escreveu Nelson Rodrigues, sem alma não se chupa nem um chicabon. Roberto Freire, o da somaterapia, não o ex-comunista convertido ao neoliberalismo, completaria: sem tesão, não há solução. E o São Paulo em campo é um time desalmadamente sem qualquer trisco de tesão. Os onze caminham descompromissadamente, desorganizadamente, assobiando, como se não fosse com eles, tem jogo hoje?, para desespero das arquibancadas que cantam a plenos pulmões "queremos raça e time sem-vergonha". Contra o San Lorenzo, em Buenos Aires, num jogo que estava até razoavelmente controlado, sem sustos, o zagueiro Rafael Tolói tomou uma chapeleta que Da Vinci assinaria, ficou aparvalhado, demorou a ter reação, trotou para não alcançar o atacante argentino; no mesmo lance, o lateral-esquerdo Reinaldo parecia dizer 'se não é com você, também não é comigo', e fez que foi, mas não foi para não ir mesmo. Quando encarou o avante Cauteruccio invadindo a área, Rogerio Ceni preferiu, mais uma vez, ajoelhar (rezou?), quando, sei lá, daqui da minha televisão achei que, num último recurso e suspiro, ele poderia ter saído chutando tudo para a arquibancada, ao menos para fechar o ângulo, dificultar a vida do argentino. Neste domingo, contra o Botafogo, em Ribeirão Preto, o incansável e sempre voluntarioso Paulo Henrique Ganso, provavelmente a mais completa tradução do time-vampiro são-paulino, perdeu bola besta no meio-campo. Fez questão de fingir que estava tudo bem, obrigado, e de não acompanhar a jogada, contra-ataque que terminou com linha de passe e o primeiro gol da equipe do interior. Vai ver o camisa 10 estivesse já fazendo as contas, mentalmente, de quanto poderá ganhar com eventual transação, novo contrato, time no exterior. Desde seus instantes terminais no Santos, Ganso tem sido atleta que disputa cada partida como se fosse a última, tamanha é a gana que faz sempre questão de evidenciar. Perdida em algum lugar do passado, a última boa partida daquele que tinha tudo para ser o maestro da Seleção - que não foi e, ao que tudo indica, não será - aconteceu em noite mágica de 22 de junho de 2011, no Pacaembu, contra o Peñarol, final da Libertadores e tri continental santista. Concordo, boleiros e boleiras, tem cheirinho de fritura de Muricy no ar. Tem disse-que-disse, bravata e bordoada na diretoria, a desmentir cabalmente a tal administração exemplar e diferenciada. Salários estão atrasados. Ninho de cobrinhas criadas. O vestiário rachado. Já se fala até em técnico estrangeiro. O caos. Se cuida, Muricy. Você conhece bem as entranhas do futebol. Sabe que não vai dar. Teimosia tem limites. Seu corpo também. Saúde. Com toda a dignidade, deixa o boné ali na mesa da sala de imprensa. Vai ser feliz em Ibiúna. Os torcedores do São Paulo vão continuar te respeitando. E, vá lá, se alguns mais exaltados e descerebrados resolverem te xingar e te ofender, paciência, azar o deles. Futebol também é assim, meio imbecil, às vezes ingrato. Lembre que você tem história e pode assinar o nome em vermelho, preto e branco. Diga para eles: 'agora é descanso'.

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