segunda-feira, 20 de abril de 2015

MÃOZINHAS ALVINEGRAS NERVOSAS

Mal tínhamos saído da garagem do prédio, estávamos ainda na esquina de casa, paradeza das ruas de Perdizes em domingo de feriadão, a caminho da Vila mais famosa do mundo. Daniel não conseguiu segurar: "pai, a gente vai na final, né?". Senti uma pontada, confesso. Ai. As mandingas do futebol não costumam perdoar comemorações antecipadas. Puxei o freio. "Filho, calma, primeiro a gente precisa ganhar hoje". "A gente vai ganhar. 2 x 1. E o jogo do Itaquerão vai empatar e vai para os pênaltis. Aí não sei quem ganha", arriscou o palpiteiro de plantão.  Senhoras e senhores, se tivéssemos feito um bolão, brincadeira que ele adora (quando fatura) e odeia (quando perde)... Avenida Brasil, Parque Ibirapuera, Ricardo Jafet, Imigrantes. Garoa fina. Chata. "Pai, acho uma porcaria ter pára-brisa. Só serve para embaçar o vidro. A gente não enxerga nada". Ligamos o rádio, para acompanhar a semi-final entre Corinthians e Palmeiras. Embalada pelo som atômico de José Silvério, os primeiros quilômetros de estrada, até o pé da Serra, transformaram-se numa animada mesa-redonda, daquelas de dar inveja a Bate-Bolas e Tá na Áreas. "Gabriel para Robinho... parece o Santos. Mas é o Verdão em campo! Pai, tem que marcar o meio-de-campo do São Paulo. Os caras vão jogar com muita gente por ali. Só o Pato na frente. Robinho e Geuvânio vão ter que voltar para acompanhar os laterais". Comemorou quando foi confirmada a escalação do artilheiro Ricardo Oliveira. Enquanto falava, fazia dançar no ar as mãozinhas nervosas. Mexia no cinto de segurança, enroscava os dedinhos gordos uns nos outros, batia no banco, batucava. Mãozinhas elétricas, irrequietas. É assim quando ele está tenso, nervoso. Ainda mais em dia de decisão boleira, Santos na parada, primeiro clássico no estádio. Usa as mãos para extravasar, para deixar escapar a eletricidade futebolística que sobra de montão. Mania de quem, recebido neste mundo pelos sambas da Velha Guarda da Portela, já nasceu segurando muito firme o cordão umbilical, sem querer largá-lo. É meu e vai continuar sendo, parecia dizer. A médica precisou usar de toda a sua autoridade. "Larga o cordão, Daniel. Seja bem-vindo". Gol do Palmeiras. Ele esfrega o rosto, os olhos, passa as mãos pela vasta cabeleira. "Pai, e aquele tesoureiro do PT?". "Foi preso, filho". "Já? Sem julgamento? Não acho certo. Acho que as pessoas só deveriam ser presas depois do julgamento". Concordei. Ele fez um carinho na minha cabeça. De leve. "Neblina na Serra. Operação Comboio. Saída do pedágio, a cada meia hora", anunciou o luminoso. "Ainda bem que a gente saiu cedo, né, pai...", disse, roendo as unhas. "Filho, cuidado com esse dedo, vai machucar e sobrar pelinha, como da outra vez". Parou. Sei que ele também não gosta de estrada com chuva, o barulho constante dos pingos no vidro do carro. As mãozinhas ficaram ainda mais indóceis. "Filho, fique tranquilo. A gente vai bem devagar". Ele tentou se convencer de que o tempo não estava tão ruim assim. "Olha, consigo enxergar o outro lado da estrada, as árvores, as placas. Tudo bem". Quando chegamos na Baixada, quarenta minutos depois, os três enormes túneis tendo ficado para trás, a peleja no Itaquerão já estava no intervalo. O Corinthians tinha virado. "Caraca, é muito difícil mesmo ganhar deles lá, pai". No fundo, no fundo, sei que carregava uma pontinha de frustração - estava errando o resultado do jogo. "Por favor, filho, segure as capas de chuva com a esquerda. E não solte da minha mão". Ele entendeu o recado com precisão. Apertou com a direita a minha canhota como se fosse de novo o cordão umbilical dele. Naquele momento, talvez fosse isso mesmo. Religação. Eterna ligação. Caminhamos grudados até o portão 17 do estádio Urbano Caldeira. Nas arquibancadas - "Dani, vai ter de ser em pé mesmo, ninguém vai sentar" - , tentamos acompanhar os pênaltis que definiriam o primeiro finalista. Era puro exercício de adivinhação, porque mirávamos um monitor minúsculo, lá no alto, na cabine de uma das emissoras de TV. "Quem vai bater?". "Sei lá, Dani. Só vejo um vulto de branco". Quando a galera explodiu na primeira comemoração da tarde, confirmamos a classificação do Palmeiras. Soubemos também que Vasco - como assim, pofexô? - e Atlético mineiro também tinham se classificado para finais dos estaduais. Dilma, atleticana, derrotou Aécio, cruzeirense, mais uma vez. Não tem jeito. Será que ele vai pedir o impeachment do galo mineiro? Ganhar de virada com dois gols de jogador argentino pode ser considerado crime de responsabilidade. Alô, alô, revoltados on line! O celular vibrou. "Pai, bom jogo". Era Luiza, que achou melhor ver o Peixe pela televisão. "Não quero dessa vez, é clássico, fico muito nervosa e angustiada". Estamos juntos, filha. "Bom jogo!", respondi. As mãozinhas aceleradas de Daniel não paravam de bater palmas, no ritmo dos cantos da torcida. Na hora do "nascer, viver e no Santos morrer" ele cerrava os punhos, esticando e chacoalhando os braços. "Pai, todo mundo cantando!". Lembrei que, também num dia 19 de abril, num distantíssimo 1987, quando era um menino, 15 anos, estive na Vila para um outro San-São, também Campeonato Paulista, fase de classificação. O Peixe ganhou de virada, 3 x 2, dois gols de Mendonça e um de Éder, de pênalti. Bom presságio. 19 de abril. Todo poder aos índios brasileiros. Que sejam finalmente demarcadas todas as terras que lhes pertencem. Vai começar.  Dou um beijo estalado no dorso da mão direita dele. Com tradição não se brinca. Boa sorte. Chute de Denilson passa raspando a trave. Daniel volta a roer as unhas. Dá socos no ar. Rogerio defende balaço de Robinho. Chute cruzado de Geuvânio passa raspando a trave. "Uhhh". Palma estalada. Outro soco no ar. Agora pára tudo. Congela. Vamos quadro a quadro. São Paulo perigoso na nossa área. Lucas Lima chega para dominar a jogada com irritante e perigosa tranquilidade. "Tira daí, bico", grita Daniel. Ele sai tocando com calma, pelo meio, para Lucas Otávio, que só domina e dá um passe de lado para Geuvânio, ainda na defesa alvinegra. Com cinco toques rápidos na bola, o camisa 11 já tinha deixado para trás a linha do meio-campo e dois são paulinos. Mais três toques em diagonal, para a esquerda. Mais um tricolor a ver navios. "Vai!", berra Daniel, apertando meu ombro com os dedinhos gordos e fortes. Um  chutaço, em curva. Golaço. Pintura. Na nossa frente. O pequeno pula, pula, pula. Me abraça forte. Aplaude. A Vila ensandecida vai à loucura. Intervalo. "Pai, preciso fazer xixi". Lá vamos nós. "Vou lavar as mãos". Água e pipoca, para hidratar e encher a pança. Susto no começo do segundo tempo, na bola de Pato. Daniel está quieto. Atento. Concentrado. Fala com as mãos. Mexe e aperta meu braço, quase beliscões. Tudo bem, está valendo. Mexe no meu cabelo. Bagunça todos e cada um dos fios que ainda me restam. Prende minha barba com os dedos, separando um tufo, como se fosse cortá-lo. Arranha meu rosto. Passa a mão pelo meu ombro e me leva para bem perto dele. Rosto com rosto. Aconchego. Foi assim que vimos o segundo gol. Ricardo Oliveira. Daniel soltou tudo o que estava travado até então. Arriscou um choro de alegria. Gritava como nunca tinha visto. As veias do pescoço pareciam querer saltar. "Gol, go, gol, gol! A gente vai para a final, pai! Eu falei!". Pulou no meu colo e cravou as mãos nas minhas costas. As hérnias de disco ameaçaram reclamar. Aquietem-se! Não agora! Ficou grudado em mim por quase um minuto, eu levando tromabadas de outros torcedores em êxtase e tentando me equilibrar naquelas estreitas fileiras de arquibancadas da Vila. "Quanto falta?". "Cinco minutos". "E agora?". "Quatro minutos, filho". Três. Gol do São Paulo. Ele sustentou. Só queria saber do tempo. "Um minuto". "Quatro de acréscimo? Por quê?". Batia as mãos na testa. "Acabou, juiz. Acabou". Nem viu os últimos lances. "Chega". Batia palmas. Dava tapas nas próprias pernas. As mãos continuavam a funcionar como divã, a exorcizar demônios e energizar alegrias, exigindo o final do jogo. Celular chamando. Minha santista do coração. Era com você que eu queria falar! "Filha, te amo, ganhamos. Mais uma! Estamos voltando". Barulho infernal, só consegui ouvir os gritos dela. A mesma recomendação: "Dani, não solte a minha mão". Obedeceu, fazendo carinho nos meus dedos. Ligamos o rádio, para ouvir as entrevistas. "Pai, acertei os palpites". Alguém achou que ele ia esquecer? Cobrava a fatura. As mãos, mais calmas, estavam ocupadas agora em abrir a garrafa d'água, achar as bolachas no pacote. "Tem neblina, pai?". "Não, tudo sossegado, Dani". "Então vou dormir, tá?". Botou as mãos atrás da cabeça, num travesseiro improvisado. Estavam agora imóveis. Serenas. Pé quente subiu a Serra sonhando. Talvez com a final. A sétima consecutiva. Como nos tempos de Pelé.    

Nenhum comentário:

Postar um comentário