quarta-feira, 10 de dezembro de 2014

MELIANTES DE ALTA PERICULOSIDADE

Foi dos medos mais terríveis que já senti na vida. Aquela adrenalina que toma conta de cada mitocôndria de cada célula do corpo e paralisa todos os músculos. Só tenho lembrança de pavor parecido quando, aos seis anos, em férias de verão, chácara em São Bernardo, moleque abusado, achei que poderia encarar numa boa o filme "Sete máscaras da morte". Cabeças degoladas rolando escadas e mulheres afogadas em banheiras, sem contar os choques elétricos. A calça do pijama quase amanheceu molhada. Na madrugada, corri para a cama do meu avô. Três noites sem dormir. Pesadelos e lencóis cobrindo a cabeça, artimanha que, imaginava em minha incocência de criança, seria suficiente para me proteger e escapar dos assassinos televisivos que, àquela altura, tinha certeza, sabiam quem eu era e me perseguiam.
No meio da tarde de ontem, cruzamento da rua Cardeal Arcoverde com a João Moura, agradável e tradicional bairro de Pinheiros, fui tomado por aquela mesma tremedeira, subindo em ondas arrebatadoras pelas pernas e braços. O trânsito estava lento - o que não é exatamente uma novidade na cidade que é senhora da maior frota de carros do país (quase seis milhões de carangos). Amarelo. Vermelho. Parei. Antes da faixa de pedestres. Foi quando bati os olhos na ladeira onde ainda resistem bravamente alguns sobradinhos simpáticos e aconchegantes, que me remetem a cheiros e cores da minha infância. Eles estavam se aproximando. Pedaladas firmes e ritmadas. Caras de gente dos infernos. Pouco enxergava dos rostos deles, é verdade, escondidos por máscaras e capacetes. Mas eram expressões perversas. Tenho certeza. Nem olhavam para os lados. Luvas e joelheiras ajudavam a compor o figurino dos meliantes. Cavaleiros medievais repaginados, versão século XXI. Darths Vaders com roupas coloridas.
Eram três. O primeiro vinha um pouco mais à frente, como um líder destemido, seguido de perto por mais dois malfeitores. Um triângulo, típica posição de ataque. Já tinham certamente tudo combinado e e ensaiado. O comandante dá o bote. A retaguarda protege e termina o serviço. Eu era a vítima escolhida. As rodas continuavam girando em sintonia, rasgando com firmeza a faixa vermelha lulo-petista. O líder soltou a mão esquerda do guidão. Ergueu o tronco. Fez um sinal. Os três imediatamente apertaram os breques, reduzindo em seguida a frequência das pedaladas. Assaltos, sequestros-relâmpago, espancamentos... São capazes das mais terríveis atrocidades, essa escória sob duas rodas.
Travei as portas do carro. Fechei os vidros. Cerrei os dentes, maxilar doendo com tanta pressão. A mão esquerda procurou a carteira. Com a direita, digitei 190 no celular. Bastaria apertar discretamente a tecla verde com a figurinha do telefone e gritar, sei lá, 'socorro, atenção, marginais na Cardeal com João Moura'. Os policiais militares entenderiam a senha, meu sufoco. Pelo retrovisor, pude notar que a motorista do carro de trás, sei lá qual desses possantes de luxo, conversava animadamente pelo viva-voz, sem qualquer receio. Que cretina. Fiz menção de avisá-la, de gritar 'cuidado, vagabundos de bicicleta'. Recuei. Permaneci imóvel. Se perceber qualquer movimentação suspeita, não reaja, não faça movimentos bruscos e que possam assustar. É o que recomendam os bons manuais de segurança e sobrevivência nessa selva urbana.
Com todo cuidado, desligo o rádio. Tocava Raul. 'Mamãe não quero ser prefeito. Pode ser que eu seja eleito. E alguém pode querer me assassinar'. Não digo matar, que não sou dessas coisas, sou gente de bem; mas bem que tenho vontade de dizer poucas e boas para esse prefeito gato que resolveu atrapalhar o trânsito paulistano com essas malditas e imprestáveis ciclofaixas vermelhas. Para quê? Só para enfeiar a metrópole? Para atrair e juntar essa corja? Olho para elas e me revolto. Diabos, como farão os moradores dessas ruas nesse final de ano? Onde os familiares e amigos vão estacionar seus carros para as ceias natalinas e as confraternizações sempre muito autênticas e verdadeiras, embriagadas de sinceros afetos e de presentes com valores mínimos? Como vão essas pessoas carregar os perus? As saladas? Os manjares? Os fios de ovos? As cerejas e uvas? Fico imaginando a correria desbragada pelas calçadas e as trombadas, choques de travessas e tabuleiros, já que serão obrigados a deixar os automóveis sabe-se lá onde.
Foi só insight. Voltei. As bicicletas estão muito perto, sei lá, uns vinte metros, se tanto. Pé na embreagem. Engato a primeira. Cinco metros. Pedal direito, pedal esquerdo, pedal direito, pedal esquerdo, as correias girando em compassos sincronizados. Chegaram. É agora. Vamos lá. Mais duas pedaladas. Tomara que levem só o dinheiro. Dos males, o menor. Sem violência física. Não tiro os olhos deles. Eles me ignoram. Passam reto. Nem olham para mim. Escapei. Escapei! Perceberam que eu estava esperto, preparado. Só pode ser. Certamente. Vão atacar algum outro desavisado logo mais adiante. Ainda deu tempo de observar aquelas luzinhas vermelhas piscando acima das rodas traseiras. Verde. Acelerei, ainda com a adrenalina estourando. Parti cantando pneus. Pedestres olharam assustados. Fiquem espertos, seus tontos, não sou eu a ameaça. Ainda estão rondando por aí. Virei à direita na Cardeal. Músculos queimando de tão doloridos, as pernas ainda tremendo, sem conseguir controlar direito o pedal da embreagem (exatamente como acontece quando a gente faz exame de auto-escola).
O susto ainda não passou. Aquelas figuras pedaleiras não me saem da cabeça. Quem anda de bicicleta não presta. Todos sabemos disso. São gente sem qualificação. São pessoas do mal. Meliantes. Vagabundos. Muito, muito cuidado com esses calhordas. Olha, está cada vez mais difícil viver em São Paulo.

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