domingo, 27 de abril de 2014

A COPA COM E SEM LOUÇA

"Meu jogo de Copa inesquecível"

Ricardo Paes Carvalho, jornalista


Tá cheia, como sempre. Afinal, quem gosta de lavar louça? Absolutamente ninguém. Mas eu gosto. Trata-se de uma boa terapia. Aquela esponja molhada, cheia de graça, com o sabonetão, geralmente enquadrado em um recipiente plástico e que, não importa a cor, termina por fazer boa espuma. Espessa, grossa, capaz de tirar toda a gordura de cada utensílio ali arremessado. Vidro, ferro, madeira, plástico, resto de comida, até cuspe e cinza de cigarro, às vezes. Uma verdadeira sopa escura e que ninguém quer nem mesmo pensar em colocar a mão. Pois eu ponho. Todo dia. Então, quando hoje gritam “não vai ter Copa”, é possível entender, não é verdade?

Estava eu com o caneco na mão, ou seja, lavando louça, quando meu camarada ligou fazendo o convite para escrever sobre a Copa, evento que começa em menos de dois meses corridos. Cara, eu gelei, né? Vale lembrar que esse amigo de fé, apesar dele ser ainda mais ateu que eu, foi meu professor, e dos melhores! Grande mestre. Por isso pensei: vou falar daquilo que eu entendo. Copa e cozinha.

Acontece que esse irmão camarada, além de grudar lambe-lambe de foice e martelo, é um puta de um boleiro. Para quem não o conhece, é daqueles com um físico franzino, mas uma cabeça que é um trovão. Talvez daí a projeção com a bola, que brilha nos seus pés. Além de saber tudo de bola, pelo simples fato de ter nascido assim, nossa única semelhança de nascimento é que ambos nascemos pelados, mas ele, com certeza já batia bola com a placenta.  É o cara que assiste até terceira divisão, se empolga nos debates de boteco quando o velho escrete está em pauta, levanta, articula os braços, arregala, por trás de seus característicos óculos, aqueles olhinhos azuis irrequietos, saltitantes, sempre percorrendo tudo e todos, enfim, este é o Chiquinho Bicudo.

Um gigante, por quem tive o privilégio de ser orientado em um trabalho de iniciação científica e no de conclusão de curso também. Fizemos uma revista sobre educação e histórias em quadrinhos, enfim, H.Q.  Com a parceria de um maninho de coração, Diego. Colocamos em texto corrido o que já foi muito fatiado, afinal, a HQ fatia sua história. Vale lembrar que Chiquinho também era meu bisavô. Fazendeiro, de Espírito Santo do Pinhal. Conheci também. Foi pouca coisa, mas o suficiente para ter um vínculo afetivo. Ele chamava seus netos e bisnetos de “seus filhos do diabo”, e ria com a gente. Referências.

Mas vamos à Copa. Putz, são muito limitadas as minhas lembranças, bem menos do que as memórias de nosso nobre anfitrião Chico. Mas farei um esforço aqui.  Assim como os quadrinhos, minhas lembranças da Copa são todas recortadas, editadas nesse meu HD interno. Creio que isso se deve à minha infância e tenra juventude bem longe deste esporte bretão. Meu pai, um cardiologista pernóstico e ranzinza, embora saiba tudo da medicina clínica, coração, teatro, cinema, arquitetura, macramê, pintura, música, dança e escultura, sempre teve uma espécie de asco ao esporte mais popular de nosso país, e claro, do mundo. Tinha orgulho em dizer que seus filhos (somos em quatro irmãos homens) não batem bola por aí. Besta. Pois digo também com orgulho que este autor que vos escreve aqui joga bola há mais de dez anos com muitos amigos queridos. Ganhei até apelidos carinhosos, como Boneco de Olinda, jogador de jogadas espíritas, os quais demonstram realisticamente um carinho enorme e inversamente proporcional ao jogo, quando a bola chega aos meus pés.

Nesse meu emaranhado de memórias, o primeiro fio de lembrança que puxo é o da Copa de 82, é isso? (Peço a licença de dizer que não me responsabilizo por datas e nomes de jogadores corretos, sou péssimo nisso, mas me esforçarei na descrição e contextualização para que vocês, que sabem de tudo, possam localizar a resposta certa, combinado?). Devia ser por aí, pois estava no antigo ginásio do colégio. E lembro como se fosse hoje, a garotada comprando caixas e caixas de chicletes, só para pegar a figurinha dos jogadores. Eu, fissurado por chiclete na infância, me contorcia de dó ao ver tanto chiclete espalhado no chão no pátio. Era uma pena mesmo. Confesso que em alguns momentos, escondidinho, ia lá, pegava alguns, dava uma assopradinha, e mandava pra dentro. Sem medo de ser feliz. Era engraçado. É, tirava um sarro daqueles meninos engomadinhos de um colégio legal, mas cheio de firula, e que de Santo só tinha o nome.

Mas a Copa de que mais lembro foi aquela maldita em que o Paulo Rossi nos freleu.  Teve a do Zidane também.  A mão de merda do Maradona, tão canalha quanto sabia jogar bola. Mas sabe o que acontece? Não olho o futebol como estratégia, mas sim como complemento, um momento festivo, social. Como bem disse o pai de uma amiga minha, “o futebol é um reflexo da sociedade brasileira”. Grande, seu Fernando.

Lembro dos encontros dos amigos, com a família, as brincadeiras. Aquela energia boa em saber “Na casa de quem vamos assistir a Copa hoje?” Por exemplo, as dos anos oitenta, apesar de lembrar mais das olimpíadas do que das copas, lembro de assistir com minha família, com os amigos, comendo pipoca, fazendo bagunça. Outra delas foi a de 1994. Bom, vocês com certeza lembram. Nessa Copa eu tinha descoberto o circo. Era o Circo Escola Picadeiro, que ficava ali na esquina da Cidade Jardim, colado com o Rio Pinheiros. Assisti a vários jogos no telão montado no meio do picadeiro. Zé Wilson, o dono, era trapezista, e dos bons. Era de uma família tradicional chamada “Os Mouras”. Foi quem me ensinou  a magia do trapézio de voos. Cheguei a ter a manha de desenvolver todas as aptidões circenses ali, do trapézio ao malabares, pirofagia e, claro, perna de pau. Talvez essa habilidade eu deva ter trazido ao futebol também.

Zezão, com sua pança enorme e que conhecia o corpo como ninguém, contava que tinha conseguido aquele terreno numa doação do Guarnieri, aquele que escreveu “Eles não usam blacktie”. Ficou ali por décadas, até que a prefeitura, não sei qual, tomou o que já era do povo. Pois além do circo, tinha 3 campos de futebol, jogos importantes da várzea. Lembro até do bar que ficava entre o circo e os campos. Boteco chulé mesmo, mas fazia o Zezão largar a aula de trapézio, deixando tudo na nossa mão, e ficava lá, a tomar umas cachaças. Lembro de ir lá buscá-lo uma vez e, chegando, vi que no bar tinham vários passarinhos na gaiola, de rolinha a sabiá. Estranhei, mas precisava levar o Zé pro circo, pois só assim conseguíamos armar a rede de segurança para iniciar a aula. É uma pena isso tudo ter terminado. Mas persiste, com os alunos que, hoje, tornaram-se professores.

E com o tempo, acabei caindo de paraquedas em dois grupos de futebol. E como já diriam os amigos que me aguentam na peleja semanal, continuo um perna de pau, mas até que atrapalho bem os atacantes adversários, ali na zaga. Temos o nosso religioso futebol todos os sábados, lá na quadra do Ipiranga. É aí também que aprendo um pouco mais sobre essa nobre arte com a qual nunca tive afinidade. Como já disse, sou de uma família de 4 irmãos, cujo pai se orgulhava em dizer que seus filhos não batem bola, que é coisa de ralé, de povão. Eu sempre discordei e por isso estou aqui, escrevendo um texto sobre a Copa, mais que isso, sobre o futebol e tanta coisa boa que ele me ofereceu.

Agora, essa Copa, bom, como direi, espero que todos se divirtam, sim, torçam muito, reúnam-se, gritem, esperneiem, cornetem deus e o mundo, pintem muros, postes de luz, avenidas inteiras, pendurem bandeirinha, xinguem a televisão, façam “catiça”, cruzem os dedos, usem uma mesma camisa dias a fio, rosnem, estourem rojões, bombinhas, traques, arrebentem com o sofá, quebrem cascos de cervejas (desde que não seja na cabeça de ninguém, né), tomem um porre, ufa... afinal, é sim um momento de celebração, e como todo ritual, deve ser feito em conjunto, em comunhão. Assim, desse jeitinho mesmo, como eu e meu camarada estamos fazendo aqui. 

Agora deixa eu voltar pra cozinha que a pia já está cheia de novo. Pelo menos ali, também tenho um companheiro que dá voz a tudo isso que foi dito, o radinho de pilha. Mas esta é outra história (que saudade me dão as estórias nesse momento).


Bola na rede e beijos pra todos.

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