terça-feira, 4 de março de 2014

HOMO SAPIENS POLEGARIS

A temporada havia sido impecável - onze jogos, onze vitórias. Ataque mais positivo do torneio, três goleadas sensacionais aplicadas durante a competição, com direito ainda ao artilheiro do campeonato. Um dos tentos anotados, se possível fosse, verdadeira obra de arte, concorreria certamente ao prêmio Puskas de gol mais bonito do ano. Faltava a última, a derradeira. A decisão. Desejara desde sempre e ardentemente aquele momento, muitas noites sonhara com a finalíssima (teve alguns pesadelos também, é verdade), os times perfilados, o estádio cheio, a vibração das torcidas, bandeiras tremulando, as cores espalhafatosas dos uniformes contrastando com o verde vivo do gramado. Jogava como favorito.

O time do coração já estava em campo, esquadrão completinho, sem desfalques por cartões ou contusões. Tudo pronto. O árbitro fez sinal de que deveria ser respeitado um minuto de silêncio. Apitou. Valendo. O garoto respirou fundo. Não tirava os olhos da telinha. Nem piscava. Apenas mexia as mãozinhas nervosas. Freneticamente. Os dedões eram capazes de movimentos espantosos - tenho cá comigo, aliás, que depois da conquista do polegar opositor, longo e com maior capacidade de rotação, que ajudou a nos diferenciar dos antigos primatas, um dos próximos avanços evolutivos da nossa espécie será alcançar habilidades extraordinárias com esses nossos incríveis dedões. O máximo de movimentos num curtíssimo espaço de tempo, em áreas minúsculas. É só contemplar o que os garotos são hoje capazes de fazer com as teclas quase invisíveis dos celulares. Quase mágica. Talvez saia daí uma nova espécie mesmo, o Homo sapiens polegaris. Darwin ficaria orgulhoso. A seleção das espécies em marcha.

O jogo, como era de se esperar, tinha começado difícil, truncado. Amarrado no meio do campo, marcações fortes dos dois lados. Caramba, não estava impedido, já está difícil chegar na área e esse bandeirinha safado ainda marca o que não existiu. Não dá, é um pilantra. O tira-teima confirma a posição irregular. O garoto, tenso, coração aceleradíssimo, não se deu por vencido. Também, não marcou falta no lance anterior... Foi falta, ouviu? Falta. Merecia até amarelo. Está roubando. É um roubão! Conversava de igual para igual com a telinha, como se a máquina pudesse entender. Responder. Falava alto. Gritava. Mandava o comentarista calar a boca. Esse cara é um pé frio, ele abre a boca e dá azar. Sai tudo errado. É sempre assim. Tira ele daí! Sai logo! Fica quietinho, seu azarado.

A irmã mais velha suplicou por favor, fala um pouquinho mais baixo, não estou conseguindo me concentrar para fazer a lição de casa. Por favor. Saiu de cena rapidinho, indignada, praguejando. Tinha sido expulsa da sala. Impropérios impublicáveis. Você é pé fria também, some, vai para o seu quarto. Estou nervoso, não está vendo? Foi o tempo de se concentrar novamente e de ver encaixados, lindamente, três dribles em sequência do craque da camisa dez, que invadiu livre a área adversária e tocou de cavadinha para o fundo do gol. Deu até para ouvir o "puffffff" inconfundível das redes sendo estufadas.

As mãos finalmente dançaram soltas no ar. O moleque liberou um grito gutural, provavelmente muito parecido com aqueles que os homens das cavernas deviam mandar quando conseguiam dominar a caça, comemorando a conquista. Garantindo a sobrevivência do bando. Ah, moleque! Gol, golaço, chupa, golaço, chupa, chupa! Time do coração na frente. A irmã fez ainda última e desesperada tentativa. Mãe, assim não dá, esse garoto parece um louco. É só um jogo. Ouviu o berro que ele deu? Quase morri do coração. Não é possível, não é normal. Nem bem terminou de falar e ela, que imaginava que o limite já tinha sido atingido, ouviu, altos brados, palavrões que jamais imaginou existirem. Ficou vermelha - mas até tentou memorizar alguns, em caso de precisar usá-los com alguns amigos malas insuportáveis. O adversário tinha empatado.

Goleiro burro, frangueiro, olha o gol que você me toma. Meu deus, como é ruim! E esse zagueiro? É burro também! Burro demais! Não sabe jogar, não sabe nada de bola. E se acha, é um SeAchão. Vai tomar banho. Vai sair. Chega. Entra o reserva. E você que está entrando no lugar dele, vê se faz alguma coisa de útil! Se não fizer, vai sair também. Façam o favor de jogar bola! Vontade, ouviram! Raça! Não aguento mais vocês! A voz já saiu esganiçada, lábios tremendo. O garoto tentava engolir o choro e continuar em frente. A mãe achou que tinha dado. O barulho era infernal. Num pulo, chegou à sala. Acabou. Vou desligar essa porcaria. Não dá, filho. Que história é essa? Você vai ter um troço. À toa. Por nada. Não vale a pena. É só um jogo. Não pode ser assim. Por favor. O moleque nem ouviu, embriagado pelo que acontecia na telinha, preocupado em não errar.

O pai, que estava ouvindo os gritos mesmo com o chuveiro ligado no modo inverno e que acabara de sair do banho, fez menção de entrar na conversa. Chegou a dizer filho... Recuou. Bateu a nostalgia. Lembrou que era exatamente assim, gritos e nervos à flor da pele, que ele disputava suas finais de campeonato no velho Atari, no ancestral Telejogo. Os polegares não precisavam ser tão hábeis, é verdade, os controles eram quase primitivos (botãozinho vermelho único), quando comparados às parafernálias atuais. As imagens, então, meu deus... em preto e branco, ou estourando cores nada nítidas, eram como pontinhos e pauzinhos rabiscados em paredes de cavernas. Não tinha canto de torcida, uniforme um ou dois, possibilidade de fazer substituições, arenas padrão FIFA, narradores, comentaristas, PES 2014, Nintendos Wiis... Eram, contudo, eventos únicos. Épicos do futebol virtual. Partidas tensas. Inesquecíveis. Os pais (avós) diziam que não era possível, que era só um jogo, que se continuasse daquele jeito iriam guardar o aparelho por um tempo. O pai sofria. Era mais forte que ele. A herança foi implacável. O filho sofre. É mais forte que ele.

O pai chega mais perto do moleque, a essa altura com o rosto quase mergulhado na tela cintilante e de alta definição do computador. As imagens são lindas, alucinantes. O garoto treme, elétrico. Está arfante, sem parar de gritar com seu time. É final de campeonato no vídeo-game doméstico. O velho sorri, discretamente. Cerra os punhos. Começa a torcer. Vai, filho. Bem baixinho. Confia nos polegares - e no título - do rebento.            

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