sexta-feira, 29 de novembro de 2013

UM BANDEIRINHA ARROMBADO. E A PEDAGOGIA DO FUTEBOL

A noite estava fria para um sábado de outubro, início de primavera, Dia das Crianças. Chegamos cedo ao aconchegante Paulo Machado de Carvalho, o velho Pacaembu, disparado o melhor e mais charmoso dos palcos paulistanos para se ver futebol. Daniel, meu filho, e Leonardo, sobrinho, tinham um compromisso: entrar em campo com os jogadores do Santos, como mascotes.

Sorriso de criança é sempre recompensador, gratificante, faz a gente esquecer as contas do mês, as reuniões improdutivas e estafantes, o trânsito de malucos da cidade, as decisões truculentas do presidente do Supremo Tribunal Federal, as bobagens que a gente lê no face book e até mesmo a má fase vivida pelo time do coração. Os dois pequenos estavam elétricos, andando nas nuvens, risadas deliciosas. Não paravam um minuto, lembrando as peripécias em outros jogos, os sorvetes e salgadinhos ('vou querer de chocolate'; 'eu, de limão') e escolhendo para qual jogador queriam dar a mão. Tudo certo e bem resolvido. "Pai, entrei com o Arouca!", contou Daniel, fã do futebol e das trancinhas do médio-volante. "Tio Chico, eu fui com o Tiago Ribeiro! Ele é nosso artilheiro!", comemorou o Leo. "Foi muito legal. E quando a gente pode ir de novo? Queremos na Vila!", mataram a charada.  

Em campo, vimos um jogo fraco, sonolento, irritante e que chegou a ser angustiante nos minutos finais. A cara do Santos de 2013. Para variar, time esparramado em campo, bicões para todos os lados e a sorte de um gol de bola parada (Montillo cobrou falta na cabeça do Everton Costa!) no final do primeiro tempo. No começo da segunda etapa, talvez o único lampejo de criatividade e futebol vistoso, quando Cícero arrancou da defesa, driblou três jogadores da Ponte Preta (um deles com um quase chapéu) e tocou para Montillo, que ainda deu mais um corte antes de fazer o segundo gol.

Quem imaginava que pudesse vir goleada se decepcionou profundamente - o time sumiu em campo, Cicinho foi expulso no final, tomamos um gol besta, quase cedemos o empate. Vimos os últimos cinco minutos da partida em pé, tradicional setor laranja, gritando para o juiz acabar logo com aquele martírio.

Aliás, talvez para evitar cair no sono, xingar juiz e bandeirinhas foi uma de nossas diversões naquela noite - não porque estivessem errando ou prejudicando o Santos, mas para garantir descontração e tentar dar graça a uma partida que não tinha gosto de coisa alguma. Claro que apelamos para xingamentos leves, pueris, por conta das crianças. "Babaca, cretino, você não entende nada de futebol". Leonardo até arriscou um que já tinha gritado em outros jogos, com aplausos da galera: "desgraçado!".

Mas, e Garrincha era um sábio, a gente esqueceu de combinar o repertório permitido com o restante da torcida. Vou guardar o lance eternamente nas minhas memórias de pai. Saia justíssima, lutador no canto do ringue, com a contagem já aberta... Era metade do segundo tempo e, num dos 'lançamentos' (melhor escrever 'bicão') para o ataque, Tiago Ribeiro estava impedido. O auxiliar levantou a bandeira, corretamente. e parou o lance. Imediatamente, ouviu coleção infinita de palavrões e muitos elogios à honra e honestidade da senhora mãe dele. Daniel e Leonardo riram, se empolgaram e começaram a gritar alguns impropérios mais duros e ousados também. Nosso combinado: no campo, alguns palavrões são permitidos. Alguns. Ajudam a desopilar o fígado.

Eis que, na fileira da frente, um torcedor se levanta e grita a plenos pulmões, em direção ao bandeira, exatamente na nossa linha: "SEU ARROMBADO!". Para não deixar dúvidas, repetiu o berro, lentamente, quase sílaba por sílaba, e mais alto ainda. "ARROMBADO!". Daniel riu. Gelei, pressentindo o perigo. A ratoeira estava sendo engatilhada. E foi solta no meu pescoço.

"Pai, o que é arrombado?", Daniel fulminou. Tentando não gaguejar, procurando manter expressão serena, aquela cara de paisagem de 'tudo bem, está tudo sob controle, é só uma pergunta, sem dramas, vamos lá, é dúvida legítima da criança', fingi que tinha lance de perigo em campo, só para ganhar segundos preciosos. De canto de olho, vi meu irmão gargalhando, de costas para os meninos, para não dar na vista.

"Ah, filho, é quando a pessoa está machucada, arrebentada". Foi o que deu para fazer, pensei. É o melhor que posso, nesse momento. Respirei. Apertei os olhos. E fiquei esperando a réplica, algo como "mas o bandeirinha está machucado, pai?", suando frio para já tentar construir uma réplica aceitável. Mas o pequeno calou-se, virou novamente para o campo e continuou a acompanhar o jogo. Será que mandei bem? Acho que ele ficou satisfeito com minha resposta. Ou, sei lá, sabedoria infantil aguçada, sete anos bem vividos, vai ver entendeu foi tudo mesmo. E resolveu me poupar. Valeu, filhão!

Quem foi que disse que o futebol não é educativo?

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