quarta-feira, 9 de outubro de 2013

A INACEITÁVEL TENTATIVA DE PROIBIR A PUBLICAÇÃO DE BIOGRAFIAS

O movimento dos músicos que de forma autoritária tenta proibir a livre publicação de biografias pretende evidentemente cercear a liberdade de expressão e ter sob fino controle as narrativas que serão construídas sobre eles. Desejam ardentemente transformar a História, fascinante porque rica em versões e contradições, em via de mão única, impositiva, verdade absoluta e inquestionável, um exercício de chapabranquismo oficialesco, a derramar elogios sobre tais celebridades, como se fossem sujeitos supremos, perfeitos e infalíveis. Se for dessa maneira, uma história só de "coisas boas" (sempre nas avaliações deles, claro), vão adorar ver suas biografias publicadas. Não seria exercício jornalístico, mas estratégia de marketing. E, sim, a assessoria de Chico Buarque, quem te viu, quem te vê, confirmou à Folha de São Paulo que ele faz parte do time da truculência, acreditem.  

Tenho cá comigo, no entanto, que esse bloqueio ultrapassa essa esfera da discussão do "a quem pertence a história" para assumir ares ainda mais nefastos de "quanto custa essa história" - e, se as editoras pagarem bem aos cantores potencialmente biografados, talvez e quem sabe eles possam muito generosamente mudar de posição e, num átimo de respeito pelo interesse público, conceder imediata autorização para que suas vidas sejam contadas. Fazem valer a máxima do "pagando bem, por que não?". 

Na Folha de hoje, diz o sambista Wilson das Neves que "tudo o que se usa, paga", para completar: "Todo  mundo que é ingrediente do sucesso deve ser remunerado. Quem faz a revisão, a capa, não é remunerado? E o assunto do produto, não?". E fulmina: "É até bom um dinheiro que entra na conta. Só estou esperando a minha vez". 

Não vou nem me alongar no mérito de discussão mais profunda, a escrachada mercantilização de vidas e trajetórias humanas que são públicas, histórias que, por direito, pertencem à humanidade. Para além dessa dimensão, o discurso do sambista mistura alhos com bugalhos para propositalmente confundir, numa torpe tentativa de seduzir e conquistar adeptos que, em sociedade cada vez mais pautada pela força de grana que ergue e destrói coisas belas (lembra, Caetano?), só pensam na bufunfa, nos bolsos cheios, no valor de troca, e não no valor de uso, para resgatar expressões marxistas. 

Vamos lá: quem faz a capa, quem diagrama, quem faz a revisão, quem fotografa e quem apura, pesquisa e escreve o texto de uma biografia está evidentemente sendo remunerado por trabalhos concretamente desenvolvidos. Numa sociedade capitalista, parece-me que a troca da força e capacidade de produção (braçal e intelectual) por remuneração justa e digna, ao menos em tese (chama-se salário, genericamente), é a única maneira de garantir sobrevivência. Agora, a dúvida: qual é o trabalho desenvolvido pelo possível biografado, a merecer remuneração? Qual o tempo socialmente gasto por ele diretamente nessa produção da obra? A história já está lá, é a vida dele, já aconteceu. Será apenas narrada e tornada pública. E quem vai correr para costurar as informações é exatamente o biógrafo. São pressupostos e ações completamente diferentes.

Percebam como esse raciocínio é reacionário e perigosíssimo: todos os dias, nas diferentes redações de jornais, emissoras de TV e de rádio e nos portais, pauteiros pautam, diagramadores diagramam, repórteres entrevistam e escrevem, editores editam. Trabalham todos com histórias que não são exatamente as deles, mas as dos outros. E são todos remunerados por todas essas distintas atividades. A seguir o raciocínio estapafúrdio de gente como Wilson das Neves (que não é voz isolada), todas as fontes entrevistadas para todas as matérias, nas mais diferentes editorias (Política, Economia, Internacional, Cultura, Cidades, Esportes), distintos veículos, precisariam ser também remuneradas. Afinal, o assunto do produto não ganha? E estaria assim definitivamente enterrada e inviabilizada a prática jornalística, ao menos aquela que pretende publicizar a melhor versão possível dos fatos, em nome dos direitos de cidadania e do fortalecimento da democracia. 

Mais triste é constatar que esse cerco à liberdade de expressão está sendo patrocinado por muitos daqueles que sofreram diretamente as agruras da repressão, nos terríveis anos de chumbo da ditadura militar. 

É proibido proibir. Vai passar. E, apesar de vocês, amanhã há de ser outro dia.  

4 comentários:

  1. É gente muito tacanha. Penso que se a pessoa não quer estar no foco dos holofotes e ter sua história observada e contada de alguma maneira - por ter feito algo minimamente relevante -, que vá ser caixa de banco, oras.

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  2. Chico, teu texto é bom por destacar um aspecto: o do caráter mercantil que parece estar por trás da vontade de impedir que sejam publicadas biografias que não contem com retribuição pecuniária ao biografado. "Pagou, pode escrever", é o que parece estar por trás do movimento. Tenho certeza de que muita gente por aí não se deu conta disso - eu, inocente, nem havia atentado para tal detalhe.

    Por outro lado, você cometeu um pecado que eu tenho que destacar: não fez nenhuma menção ao fato de que existe uma ação de inconstitucionalidade no STF, ADI 4815, proposta pela Associação Nacional dos Editores de Livros - ANEL, discutindo o tema, a qual recebeu parecer favorável da Procuradoria Geral da República, que a considera procedente - o que contraria os interesses vocalizados por personalidades como Chico Buarque, Caetano Veloso etc.

    Analisando o que o STF vem dizendo ultimamente sobre liberdade de expressão, é extremamente pouco provável que os candidatos a biografados descontentes obtenham o que desejam. A tendência é que os escritores possam fazer seus relatos sobre os biografados. Caso exagerem, aí sim, o judiciário, provocado, poderá condená-los a pagar indenizações que os exageros peçam.

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  3. Segue endereço de texto no site do STF sobre o assunto: "Editores pedem fim da necessidade de autorização para publicação de biografias" (http://bit.ly/Pmogsc)

    Segue matéria da assessoria de imprensa da Procuradoria Geral da República: "Publicação de biografias não pode depender de autorização prévia, diz PGR" (http://bit.ly/19064wz)

    Segue a íntegra do parecer da PGR sobre a ADI 4815: http://bit.ly/1bICCwg

    Exemplo de pensamento do STF sobre temas que envolvam a censura prévia:

    “Não cabe ao Estado, por qualquer dos seus órgãos, definir previamente o que pode ou o que não pode ser dito por indivíduos e jornalistas. Dever de omissão que inclui a própria atividade legislativa, pois é vedado à lei dispor sobre o núcleo duro das atividades jornalísticas, assim entendidas as coordenadas de tempo e de conteúdo da manifestação do pensamento, da informação e da criação lato sensu. Vale dizer: não há liberdade de imprensa pela metade ou sob as tenazes da censura prévia, pouco importando o poder estatal de que ela provenha. Isso porque a liberdade de imprensa não é uma bolha normativa ou uma fórmula prescritiva oca. Tem conteúdo, e esse conteúdo é formado pelo rol de liberdades que se lê a partir da cabeça do art. 220 da CF: liberdade de ‘manifestação do pensamento’, liberdade de ‘criação’, liberdade de ‘expressão’, liberdade de ‘informação’. Liberdades constitutivas de verdadeiros bens de personalidade, porquanto correspondentes aos seguintes direitos que o art. 5º da nossa Constituição intitula de ‘Fundamentais’: ‘livre manifestação do pensamento’ (inciso IV); ‘livre (...) expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunica-ção’ (inciso IX); ‘acesso a informação’ (inciso XIV). (...) A crítica jornalística, em geral, pela sua relação de inerência com o interesse público, não é aprioristicamente suscetível de censura. Isso porque é da essência das atividades de imprensa operar como formadora de opinião pública, lócus do pensamento crítico e necessário contraponto à versão oficial das coisas, conforme decisão majoritária do STF na ADPF 130. Decisão a que se pode agregar a ideia de que a locução ‘humor jornalístico’ enlaça pensamento crítico, informação e criação artística. (...) Suspensão de eficácia do inciso II do art. 45 da Lei 9.504/1997 e, por arrastamento, dos § 4º e § 5º do mesmo artigo, incluídos pela Lei 12.034/2009. Os dispositivos legais não se voltam, propriamente, para aquilo que o TSE vê como imperativo de imparcialidade das emissoras de rádio e televisão. Visa a coibir um estilo peculiar de fazer imprensa: aquele que se utiliza da trucagem, da montagem ou de outros recursos de áudio e vídeo como técnicas de expressão da crítica jornalística, em especial os programas humorísticos. Suspensão de eficácia da expressão ‘ou difundir opinião favorável ou contrária a candidato, partido, coligação, a seus órgãos ou representantes’, contida no inciso III do art. 45 da Lei 9.504/1997. Apenas se estará diante de uma conduta vedada quando a crítica ou a matéria jornalísticas venham a descambar para a propaganda política, passando nitidamente a favorecer uma das partes na disputa eleitoral. Hipótese a ser avaliada em cada caso concreto.” (ADI 4.451‑MC‑REF, Rel. Min. Ayres Britto, julgamento em 2‑9‑2010, Plenário, DJE de 1º‑7‑2011.) Vide: ADPF 130, Rel. Min. Ayres Britto, julgamento em 30‑4‑2009, Plenário, DJE de 6‑11‑2009.

    A tendência, ao que tudo indica, é que o STF não decida conforme a vontade dos candidatos a biografado.

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  4. Lucas, meu caro, obrigadíssimo pelas valiosas contribuições!

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