quinta-feira, 12 de julho de 2012

JORNALISMO E GUERRILHA DO ARAGUAIA


Desembarcou nas livrarias, no mês de junho, o livro "Mata! O major Curió e as guerrilhas no Araguaia", escrito pelo jornalista Leonencio Nossa, repórter do jornal O Estado de São Paulo. Trata-se de um exemplo muito bem acabado de reportagem que reúne rigor de pesquisa com competência narrativa. A obra resgata um dos episódios mais relevantes - e pouco conhecidos - da nossa história recente, o foco guerrilheiro instalado pelo Partido Comunista do Brasil (PC do B) na região central do país, no final dos anos 1960 e início dos 70, quando a ditadura militar viu-se obrigada a mobilizar tropas e a enviar cerca de treze mil soldados para a área, com intuito declarado de literalmente exterminar os jovens que desejavam acabar com o regime de repressão. A pesquisa de Leonencio revela datas e  detalhes das condições em que foram assassinados, depois de capturados e presos, 41 guerrilheiros (o número total de resistentes é controverso), ajudando a desmontar o discurso oficial do "necessário enfrentamento com subversivos perigosos ocorrido no coração do Brasil". Ali foram cometidos crimes de guerra, patrocinados pelo Estado brasileiro.

Em palestra realizada no Sétimo Congresso Internacional de Jornalismo Investigativo, promovido pela Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) e realizado na Universidade Anhembi Morumbi, em São Paulo, Leonencio contou que o interesse pelo Araguaia foi despertado em 1997, quando ele leu num jornal de Vitória (Espírito Santo), sua cidade natal, uma notinha a respeito da trajetória de Áurea Valadão, que estudava Física no Rio de Janeiro (UFRJ) e participou da guerrilha. "Algo me incomodou, mexeu comigo. E aquela matéria ficou martelando na minha cabeça".

Foi apenas em 2002, cinco anos depois, que o jornalista conseguiu visitar pela primeira vez a cidade de Curionópolis, fundada por prostitutas à época da explosão do ouro no garimpo de Serra Pelada e cujo nome presta homenagem evidente a Sebastião Curió, major responsável por comandar as operações de combate à guerrilha e que mais tarde administraria o município por quase dois mandatos (foi cassado pelo Tribunal Superior Eleitoral ao final do segundo, em 2008, por compra de votos e abuso de poder econômico). Curió já tinha ameaçado, em várias oportunidades, escrever um livro em que prometia escancarar todas as suas memórias - e os arquivos que tinha guardado. Era justamente esse o livro que Leonencio desejava escrever. O jornalista viu-se diante do desafio de inverter a mão de direção e de convencer o militar a falar - para ele. "Faltava na bibliografia sobre o Araguaia um perfil do major Curió, que pudesse contemplar também as percepções e os depoimentos das pessoas simples, os anônimos da região amazônica, que nunca tinham sido ouvidos".

Na tentativa de conquistar a confiança do militar, foram várias as viagens feitas à região, horas e horas de conversas gravadas - e outras tantas colhidas em lugares barulhentos, para que não pudessem ser registradas, ou até mesmo passadas por meio de bilhetinhos em pedaços de papel -, além de experiências inusitadas. Leonencio chegou a exibir três filmes para Curió, para sensibilizá-lo, nesta ordem: "Nascido para matar", de Stanley Kubrick (que Curió achou fraco); "Platoon", de Oliver Stone (o militar adorou as armas exibidas); e "Apocalypse Now", de Francis Ford Coppola - que finalmente tocou o coração do major. "Para convencer uma fonte, não há passe de mágica. Foi um processo, há um jogo que se estabelece entre biógrafo e biografado. Ele via que eu não ia desistir, sabia que eu ia publicar o livro. E parece ter entendido a importância de participar, até para ficar menos vilão nessa narrativa", contou o jornalista. 

Segundo Leonencio, a relação exigiu exercício diário de distanciamento, para não virar amigo da fonte. "Quando você passa a gostar de ou a odiar uma figura, fica contaminado e perde de alcance os melhores momentos da trajetória que tenta narrar". Para ele, essa postura de transparência e honestidade e o fato de ter deixado muito claro para Curió qual é a razão de ser de um trabalho jornalístico - construir a melhor versão possível da realidade - foram determinantes para finalmente cativar o militar. "Ele sabia com exatidão o que eu estava fazendo", lembra. Ao final, Curió acabou cedendo e oferecendo ao repórter acesso privilegiado aos arquivos que até então eram mantidos trancafiados a sete chaves - anotações pessoais, relatórios, fotos e mapas que foram preciosíssimos na tarefa de colaborar para costurar o enredo. "É um tanto quanto subjetivo, reconheço, mas acho que chega um momento em que a gente não aguenta mais, é preciso contar os segredos que conhecemos, por mais terríveis que eles sejam. Penso que foi assim que se deu com Curió", afirmou Leonencio. "Foi ainda um sinal evidente de que os arquivos produzidos pelos órgãos de inteligência da repressão existem e precisam ser tornados públicos", completou.        

Para não ficar refém da fala de Curió, ele teve disposição e paciência para ouvir - algo raro em tempos de celebridades, quando muitos só querem falar e se expor - outras 150 pessoas, principalmente moradores humildes e desconhecidos da região do Araguaia, além de familiares dos guerrilheiros assassinados. "A diversidade é um preceito básico do jornalismo, que nos aproxima da história real", confirmou. Leonencio contou também que o processo de escrita andou junto com a apuração - "não esperei encerrar um para começar outro". A percepção de que o trabalho havia chegado ao fim deu-se a partir de três episódios: quando conseguiu entrevistar o sujeito que havia prendido Áurea Valadão; depois que pôde confirmar detalhes sobre barbaridades cometidas pelos militares, que deceparam cabeças de muitos guerrilheiros, como espécies de troféus; e quando esteve em um tradicional colégio da cidade de Vitória para procurar os boletins de dois militantes do PC do B que atuaram no Araguaia e acabou se deparando com sua própria ficha escolar. "Pensei: estou ficando maluco, é hora de publicar o livro".

Em 2007, concluiu um catatau que tinha aproximadamente 800 páginas. Mostrou os originais a um amigo que conhece bem a história do país. Educadamente, o colega disse que "não dava, não ia virar". O jornalista jogou tudo fora e recomeçou do zero. Em maio de 2009, frio na barriga: Leonencio ficou sabendo que um colega do "Jornal Nacional", da Rede Globo, havia procurado o major Curió e tentado convencer o militar a abrir os arquivos em uma matéria que seria produzida e veiculada pela emissora carioca. "Se aquilo tudo viesse à tona naquele momento, todo meu trabalho e o livro perderiam sentido", avaliou. A solução foi usar um truque jornalístico: Leonencio publicou, no "Estadão", uma reportagem especial sobre a guerrilha, dando conta conta especificamente das execuções e do número de mortos, desnudando algumas informações, mas preservando outras. No jargão da profissão, a Globo tinha sido "furada". E acabou perdendo o interesse por Curió. Leonencio pôode concluir a pesquisa e encerrar a escrita do livro, sem concorrentes. 

"É uma história com forte viés humanista, que procura compreender os sentimentos e a entrega daqueles jovens idealistas que foram para o Araguaia lutar contra a ditadura, e que não aceita os crimes de guerra cometidos pela repressão. Mas não sou irresponsável de dizer que é o relato definitivo. Que outros sejam escritos". 

No limite, o que a obra faz elegantemente é revelar as possibilidades e os limites de uma reportagem, justamente o tema da palestra de Leonencio no Congresso da Abraji. 

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Leia também entrevista com Leonencio Nossa publicada pela revista Giz, do Sindicato dos Professores de São Paulo

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