terça-feira, 17 de julho de 2012

AIDS - O REMÉDIO LIBERADO PELOS EUA NÃO É UMA VACINA

É destaque e manchete em todos os jornais de hoje, depois de ter estourado nas rádios, nos telejornais, nos portais e nas redes sociais ontem: o governo dos Estados Unidos liberou, pela primeira vez, que o medicamento Truvada possa ser usado de forma preventiva, ou seja, com intuito de impedir que seres humanos acabem infectados pelo HIV, o vírus da Aids. A notícia é certamente promissora, mas deve ser também encarada com responsabilidade e cautela. Pode representar mais uma etapa relevante na definição de estratégias múltiplas de combate à doença que atinge, oficialmente, 34 milhões de pessoas em todo o planeta, segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS). Mas a medida está longe, bem longe de significar a cura definitiva da Aids.

Como resultado de quase três décadas de investigações e avanços, o Truvada já é um medicamento antirretroviral que faz parte do popular coquetel usado no tratamento da doença, sendo ministrado depois que a Aids foi constatada e diagnosticada; o que os testes feitos recentemente nos Estados Unidos agora sugerem é que a droga foi efetivamente eficiente também em reduzir, em média em 70%, o risco de alguém ser infectado pelo vírus. Essa é a novidade.

Esse cenário, no entanto, talvez possa criar euforia desmedida e consolidar falsas expectativas na opinião pública. Alguém poderá considerar "ah, então chegamos finalmente a encontrar uma vacina contra a Aids!". Cuidado. Muito longe disso, ao menos por enquanto. Porque, de forma bem simples, o que uma vacina faz é carregar consigo informações genéticas atenuadas e inofensivas de agentes invasores nocivos e causadores de doenças; por isso, quando é ministrada, uma vacina imediatamente estimula o nosso sistema imunológico a ficar alerta e ligado, capaz de produzir anticorpos. Se e quando o organismo for efetivamente infectado por um vírus, por exemplo, os anticorpos, já estimulados, irão reconhecer aquela invasão não desejada e imediatamente se deslocarão para atacar o destruir o vírus, garantindo segurança e proteção. Podemos dizer que essa é uma estratégia ofensiva, colocada em prática pela seleção da Espanha, que acua o adversário no campo dele e atua de forma incisiva e protagonista para derrotá-lo.

O desafio gigantesco que desde o início da epidemia está colocado para pesquisadores e autoridades de saúde pública que estudam e tratam a Aids reside nas artimanhas que o HIV conseguiu desenvolver, como estratégia evolutiva e de sobrevivência, e que coloca em prática ao atacar o ser humano. Como tem apenas RNA (sem DNA), o HIV precisa necessariamente se grudar às nossas células de defesa, para se apropriar do material genético delas e garantir reprodução. O vírus da Aids é inteligente e ardiloso, traiçoeiro, e tem ao menos outras três peculiaridades e vantagens comparativas: replica-se de forma acelerada, é mutante (tem várias "caras" moleculares) e é recombinante (os diferentes subtipos podem se misturar).  

Por conta dessas singularidades do HIV, portanto, uma estratégia ativa e ofensiva, via vacina, e até onde as pesquisas hoje conseguem alcançar, acaba sendo suicida: o vírus leva sempre vantagem em relação aos anticorpos, destrói os linfócitos e deixa o nosso sistema de defesa absolutamente atordoado e aparvalhado, sem saber ao certo que resposta oferecer à invasão do elemento estranho, e terreno fértil e aberto para a instalação das infecções oportunistas e da consequente manifestação da Aids.

De forma tão inteligente quanto eficaz, e novamente tentando simplificar a explicação de um mecanismo que é extremamente complexo, o que os medicamentos antirretrovirais fazem é evitar esse enfrentamento desvantajoso, criando uma espécie de barreira ou escudo de proteção, que impede que o HIV consiga chegar a destruir as células de defesa. Assim, por conta do próprio ciclo de vida do vírus (nasce, cresce, reproduz-se e morre), e sem ter acesso à matéria-prima que garante sua replicação (DNA), a carga do HIV no organismo acaba sendo reduzida de forma drástica, quando é possível afirmar que a doença foi controlada, embora a pessoa não tenha sido curada. Para usar a mesma analogia, é uma tática usada por equipes como o Chelsea e o Corinthians, que organizam eficientes sistemas de marcação e de defesa e não permitem que os adversários se aproximem das áreas deles. 

A contrapartida - são vários os antirretrovirais que precisam ser tomados, dependendo da gravidade e do estágio da doença (por conta das várias faces do vírus), em horários extremamente rígidos (para dar conta do ciclo de vida do HIV e evitar resistência ao tratamento), com custos financeiros elevados e nem sempre acessíveis à maioria da população (o que exige a atuação do Estado como definidor de políticas públicas) e com efeitos colaterais bastante desagradáveis. O portador do HIV deverá ainda tomar tais medicamentos durante toda a vida. Se não é mais sentença de morte, a Aids é sim uma doença crônica.

O que as autoridades estadunidenses agora permitem é que o Truvada, já usado no controle, seja ministrado também para tentar impedir a infecção. O que se faz é antecipar o uso dessa droga, oferecendo-a a uma pessoa sadia, mas com comportamento de risco. Aí entram as discussões: vale a pena?

Porque, repetindo, a pessoa é sadia, e provavelmente passará a conviver com náuseas, tonturas, diarréias, problemas renais e propensão ampliada para osteoporose - efeitos colaterais provocados especificamente pelo Truvada. O custo do tratamento é elevado e estimado em aproximadamente 20 mil reais por ano, por paciente. As próprias autoridades estadunidenses recomendam que a droga seja ministrada preferencialmente aos que mantêm comportamentos de risco (me parece que seria mesmo uma insanidade disponibilizar o medicamento para quem quisesse ficar seguro) e alertam ainda que o Truvada não substitui a camisinha como mais importante medida para evitar a transmissão do HIV.

No UOLo diretor do departamento de HIV/Aids da Organização Mundial da Saúde, Gottfried Hirnschall, afirmou que "os remédios antirretrovirais podem reduzir o risco de que as pessoas infectadas transmitam o vírus e evitar que as pessoas saudáveis sejam infectadas através de relações sexuais com parceiros com HIV, apesar dessas novas possibilidades gerarem controvérsia".

Em entrevista ao jornal Folha de São Paulo (versão impressa), David Uip, infectologista e diretor do Hospital Emílio Ribas, afirmou ser completamente contra a adoção do Truvada como estratégia de saúde pública, pois "há métodos mais eficazes de enfrentar a doença". Também na Folha, o infectologista Caio Rosenthal completou: "se o uso do medicamento não for adequado, aumenta o risco de o vírus desenvolver resistência contra o remédio".

Assim é a ciência - uma sucessão de verdades provisórias, uma narrativa de mundo onde uma descoberta gera otimismo e deve ser comemorada, mas pode ser refutada cientificamente. Por isso a ciência é fascinante, pois lida diretamente com as habilidades humanas, e também com nossas limitações. Cada avanço ou resposta suscita tantas outras questões e dúvidas, e assim sucessivamente. 

No caso da Aids, portanto, sem desconsiderar as novidades promissoras, a recomendação permanece: informação (sem tabus ou preconceitos), comportamento sexual responsável e o uso de preservativos continuam sendo as medidas mais adequadas para evitar a doença.

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