sexta-feira, 8 de julho de 2011

MODOS DE ESCREVER DE POLA E DE valter hugo

DE  PARATY


Depois de acompanhar bem de perto a alegria desavergonhadamente estampada nos rostos dos pequenos, que participaram de conversas com Pedro Bandeira e Ilan Brenman, renomados escritores infanto-juvenis, dei uma rápida escapada para ver na Tenda do Telão a mesa 6 da Festa Literária Internacional de Paraty - que recebeu o título "Pontos de Fuga". A conversa reuniu nesta sexta-feira o angolano-português valter hugo mãe (assim mesmo, como ele escreve, com minúsculas), autor elogiadíssimo pelo inesquecível Nobel José Saramago, e a romancista argentina Pola Oloixarac, uma das convidadas mais badaladas da festa e incluída pela respeitada revista literária britânica Granta na lista dos vinte melhores jovens autores contemporâneos em língua espanhola. 

Era uma mistura de sotaques e de estilos que se anunciava muito promissora - e o diálogo de fato valeu a pena. Mas já em seu início sugeriu também que a plateia teria de lidar, ao longo daquela hora e meia de reflexões, com percalços e incômodos que acabariam por tornar tortuosas algumas falas - especialmente no que disse respeito à escritora argentina. 

Feitas as apresentações, como determina o cerimonial da FLIP, o mediador da mesa, jornalista Angel Gurría-Quintana, como deve ter sido combinado nos bastidores, pediu a Pola que lesse de imediato um trecho de seu romance "As teorias selvagens", que articula utopias e situações políticas com provocações sobre novas tecnologias. A expressão constrangida de Pola acabou por denunciá-la: não havia subido ao palco com sua "cola", as linhas previamente selecionadas. Tentando manter controle da situação, sereno, o mediador apontou dois caminhos: "podemos procurar seu livro. Ou você faz a leitura usando o exemplar em Português que está aqui". A argentina fez uso da segunda opção. Não funcionou. 

Foi então que as páginas em espanhol finalmente apareceram. Alívio geral. Durou pouco. Fomos mais uma vez pegos de surpresa e o que era solução assumiu ares de novo obstáculo: a tradução simultânea da fala da argentina acontecia automaticamente, para todos, em som ambiente, e não apenas para os que tinham escolhido acompanhar com fones de ouvido. Conclusão: não foi possível ouvir os pedaços da história narrados pela voz da própria Pola. Para complicar: a ampla, geral e irrestrita tradução da fala da romancista, que infelizmente se estendeu por toda a palestra, parecia atrasada e fragmentada, truncada, com longas pausas tomando conta do ambiente, deixando pouco compreensíveis momentos significativos do depoimento.

Estranhamento - talvez seja essa a sensação a expressar mais de perto o que aconteceu com o público. O que mais se via eram olhares com contornos de pontos de interrogação e um burburinho que se transformou rapidamente em comentários incontidos do tipo "está muito ruim, não estou entendendo nada, ela não fala coisa com coisa". A avaliação foi confirmada ao final da palestra: na saída,  havia um consenso que estabelecia que a tradução tinha mesmo atrapalhado a recepção mais precisa e nítida da fala de Pola (que, por si só, já parecia mesmo um tanto dispersa). Uma pena.

Do que foi possível garimpar, Pola disse considerar a cultura como um espaço em guerra e contou que em sua obra procura estabelecer pontes com os desejos humanos, tudo aquilo que gostaríamos de dizer mas não estamos anunciando abertamente. "Me divertia essa perspectiva de fazer comédia e de dar conta da paixão pelo conhecimento, que é a razão de ser da literatura". No entanto, de forma provocativa, ressaltou que desejava guardar distância de antigas tradições políticas da literatura latino-americana, que a argentina considera muito engajadas e disciplinadas - leia-se "certinhas". 

Pola concorda que seu romance pretende assumir um certo caráter experimental e de laboratório. Lembrou que a obra é uma porta aberta para o debate sobre a moralidade de nossa época - característica aliás que considera uma tradição genuína da literatura argentina, presente em grandes autores como Jorge Luis Borges e Julio Cortázar. Contou ainda que para ela a construção de personagens é sempre uma enorme diversão. "São pessoas com quem eu gostaria de estar, de certa forma são meus amigos".

Não faltaram farpas para a crítica. "Quando uma mulher fala sobre ideias, com repertório e ambição intelectual, arruma-se sempre um jeito de banalizar a discussão e de torná-la trivial. Não tinha percebido esse comportamento até lançar o romance. Foi uma surpresa". Aproveitou ainda a chance para anunciar que está trabalhando em dois novos romances: um sobre plantas, tendo florestas brasileiras como cenário; o outro será sobre uma temporada que ela passou na Califórnia, Estados Unidos, em uma base militar da agência espacial norte-americana, a NASA. 

Sem a tradução, e num português para lá de claro e acessível, a fala de valter hugo soou muito mais atraente e pôde ser mais bem aproveitada. Ao revelar detalhes de seu processo criativo, disse que o "escritor procura substituir com a literatura aquilo que lhe falta na vida real". Para ele, escrever é um trabalho sobretudo destinado a suscitar a percepção sobre o que o mundo tem de melhor, que são as pessoas. "Livros são máquinas de fazer ver e sentir". O angolano-português fez questão de deixar bem claro - suas obras não são auto-biográficas. "Não mereço, minha vida não é interessante, não sou James Bond ou qualquer outra celebridade do cinema", brincou.

valter hugo - um dos campeões de vendas de livros na loja da FLIP, ao lado do neurocientista Miguel Nicolelis - cresceu amedrontado pela ideia da morte. Contribuía para esse temor o fato de o pai dele sempre ter dito que morreria de cancro - o que de fato acabou se consumando. A primeira meta do escritor era completar 18 anos; depois, 33, a idade de Cristo. Com quase 40 (vai completá-los em setembro), fica se perguntando: "mereço viver tanto?". 

Não por acaso, essa angústia em relação ao fim da vida evidencia-se no último romance dele - "a máquina de fazer espanhóis", em que o protagonista, um velho com 84 anos, tem de redescobrir e reinventar o sentido da vida em plena e avançada velhice. Este livro na verdade encerra uma quadrilogia, que nasce com "o nosso reino" (personagem principal é uma criança de oito anos), passa por "o remorso de baltazar serapião" (protagonista é um jovem com 20 anos), chega a "o apocalipse dos trabalhadores" (destaque para mulheres com 40) e se fecha com "a máquina...". 

"Acabei construindo, juntando os quatro livros, uma história de um tempo normal de vida para um ser humano. A literatura me ajudou a compreender essa experiência fascinante chamada vida. Se eu morrer com 40, penso que não será tão dramático", voltou a brincar.

Sem perder tempo, emendou: tem muito prazer em escrever. "Não quero que o público fique com a referência de que meus textos são deprimentes". Contou então que se diverte em várias etapas de sua catarse criativa de escritor. "Tenho ataques de riso, dou gargalhadas, e muitas vezes até perco a piada e não sei mais o que queria escrever". Reconheceu: é literalmente tomado pelo processo, fica enfeitiçado pelas narrativas - interage com os personagens, fica esperando que batam à porta dele, não sabe se é dia ou noite. "O momento de escrever é salvação. É o melhor tempo do meu ano".

Sobre o peso da tradição da literatura portuguesa, disse que é fundamental valorizar os clássicos, sem perder de vista a exigência de pavimentar caminhos criativos de singularidade. E por falar em gênios escritores portugueses, em mais um momento de descontração, contou que já dormiu no quarto que pertenceu a Fernando Pessoa. No dia seguinte, os jornalistas queriam saber se fantasmas tinham aparecido (talvez o heterônimo Ricardo Reis?). "Dormi mal sim, mas porque a cama era péssima, muito estreita", divertiu-se, arrancando aplausos da plateia, cativada também pelo próximo projeto do autor. "Sinto a necessidade de ter filhos. O romance que estou a finalizar é sobre o perceber e o descobrir o que é ser pai".

Ao final, lendo uma carta com elogios ao Brasil, aos brasileiros, às mulheres brasileiras e até mesmo a Renato Russo e à canção "Tempo Perdido" ("todos os dias quando acordo, não tenho mais o tempo que passou. Mas tenho muito tempo. Temos todo o tempo do mundo"), valter hugo caiu definitivamente nas graças do público presente, principalmente da ala feminina, de quem recebeu efusivos e demorados aplausos.

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