sábado, 9 de julho de 2011

HISTÓRIAS RUINS - ESQUECER OU NÃO ESQUECER?

DE  PARATY

Para um apaixonado por futebol, o dilema era de grande significado. É bem verdade que a Copa América disputada na Argentina tem sido ridícula, um estrondoso fracasso, com partidas sofríveis. Ainda assim, o jogo Brasil x Paraguai continuava sendo um programa convidativo - até porque, noves fora, Ganso e Neymar estariam em campo. Mas, ao final das contas, foi sem remorso nem dor no coração que troquei a peleja pela mesa 12 da FLIP, que teve como tema "Ficção entre escombros", e da qual participaram Edney Silvestre, Marcelo Ferroni e Teixeira Coelho, com a mediação do jornalista Claudiney Ferreira. A proposta era discutir obras literárias que flagram traumas, agruras e fraturas da História do Brasil na segunda metade do século XX.

Reconheço que minha vontade mais intensa - e daí ter deixado o jogo de lado - era ouvir Edney, a quem admiro como repórter e jornalista e que escreveu aquele que considero, muito modestamente, um dos mais empolgantes romances brasileiros dos últimos anos ("Se eu fechar os olhos agora"), seja pela trama policial marcada por suspenses e reviravoltas, pela maestria como as histórias são entrelaçadas, pela habilidade descritiva cinematográfica, pela sensibilidade e profundidade na construção dos personagens e também pelo final tão empolgante quanto inesperado. A polêmica já foi superada - a presença de Edney na FLIP deste ano de certa forma carregou esse simbolismo, como bem observou o jornalista e companheiro Fabio Cardoso -, mas "Se eu fechar..." merecia o prêmio Jabuti de melhor livro de ficção do ano de 2010, bem mais que "Leite Derramado", de Chico Buarque (que aliás é um livro de que também gosto bastante). 

E Edney não só deu conta de minhas expectativas como me cativou um pouco mais ao ler, na abertura da mesa na FLIP, um trecho do próximo romance dele, "A felicidade é fácil", que deve ser lançado em outubro. Em linhas gerais, é uma história que acontece num único dia, em 1990, seis meses depois do anúncio do confisco de poupanças e contas correntes promovido pelo trágico Plano Collor. A obra nasceu a partir de uma notícia de jornal que dava conta de um menino sequestrado por engano em São Paulo, no ano citado. Impressionado, o jornalista e escritor guardou aquela matéria, fonte de inspiração para essa nova investida literária."Fiquei matutando, até conseguir concatenar as ideias e colocá-las no papel".

Fiel ao tema da mesa, e procurando aproveitar possíveis pontos de conexão entre as obras dos autores presentes, a pergunta então sugerida pelo mediador aos debatedores foi: será que a Literatura pode contar a História melhor do que a própria História é capaz de fazê-lo?

Teixeira Coelho apressou-se em responder com firmeza que os melhores historiadores são literatos. "História é Literatura", insistiu o autor de "História natural da ditadura", obra que reflete sobre diferentes experiências autoritárias vividas pela humanidade, e, mais recentemente, de "O homem que vive - Uma jornada sentimental", uma espécie de viagem em busca da felicidade. "A melhor coisa que você pode fazer é colocar a verdade em discussão. Eu procuro trabalhar com versões coerentes e lógicas. Mas a pergunta é sempre melhor que a resposta", completou.

Marcelo Ferroni, autor de "Método prático da guerrilha", que usa a ficção para contar os dois últimos anos de vida de Ernesto Che Guevara, disse que o problema é distorcer deliberadamente a realidade, com fins e interesses instrumentalizados. "Mas aí estamos falando de outro espírito", decretou. 

Edney foi o último a falar nessa rodada. Não se fez de rogado e recorreu a seu trabalho como jornalista, talvez preocupado com a relativização absoluta, para manifestar divergência com a fala de Coelho. "Existem versões, mas há uma verdade, sim, que às vezes a gente não sabe bem qual é. Eu já presenciei verdades muito duras". Citou como exemplo uma reportagem feita no início do ano, durante as fortes chuvas e a tragédia da enchente na cidade de Nova Friburgo, no Rio de Janeiro, quando em determinado momento das gravações percebeu que estava caminhando sobre cadáveres. "Eram reais, verdadeiros. Há uma realidade incontestável e outras que construímos em nossos romances", advertiu.   

Na réplica, Teixeira Coelho procurou esmiuçar seu raciocínio, explicando que sua preocupação se dá com as nuances e sutilezas e sugerindo que as verdades que mais interessam a ele são aquelas que são complicadas ou ambíguas. "A história conta que Walter Benjamin se suicidou quando fugia da França para a Espanha, em 1940. Mas estava sozinho no quarto. Quem garante que foi suicídio? É verdade? É versão? Proposição?", provocou. Naquele mesmo instante me lembrei de uma entrevista que fiz ainda como estudante de jornalismo com a escritora Judith Patarra, ainda nos idos dos anos 1990, que na ocasião estava lançando a biografia de Iara Iavelberg, militante e guerrilheira que lutou contra a ditadura militar e que foi companheira do capitão Carlos Lamarca. De acordo com a narrativa, acuada e ao perceber que seria presa pelas forças de repressão, Iara teria dado um tiro no peito. Mas também estava sozinha em um apartamento em Salvador, em agosto de 1971. Perguntei à autora: "como ter certeza que foi assim mesmo que aconteceu, que essa não é uma versão que interessa à ditadura?". Ela ficou nervosa. Nâo gostou da questão. E apenas repetiu que tinha sido daquela maneira.

Àquela altura do debate, Ferroni parecia já ter se conformado com o papel de coadjuvante e mais observava do que falava.  E pôde então acompanhar mais uma discussão de fundo que acabou colocando os outros dois debatedores em posições novamente antagônicas: a preservação da memória. Teixeira Coelho revelou que uma das razões para ter escrito "O homem que vive..." foi justamente tentar esquecer e deixar os escombros e o pessimismo de "História natural..." para trás e investir em narrativas mais construtivas. Edney quase pulou da poltrona. "Quero dizer o contrário. Não podemos esquecer os escombros. Tive um amigo torturado e não morto pela ditadura. Anos depois, suicidou-se. Não posso esquecer. Assim como fiquei ainda mais horrorizado com o que aconteceu nos anos Collor quando fiz a pesquisa para o novo romance. Além da corrupção, foi naquele momento que vimos intensificar a diáspora brasileira, gente que saía daqui em busca de sobrevivência em outros países".

Teixeira pediu réplica: "Esquecer tudo é impossível. A questão é mais complexa. Esquecer o que é ruim também significa ter memória".

Edney insistiu na tréplica: "Acompanhamos recentemente discussão complicadíssima sobre segredos e arquivos secretos da ditadura. Insisto: não podemos esquecer".

Saí da Tenda do Telão convicto: tinha valido muito a pena ter deixado de lado o jogo do Brasil (não posso dizer o mesmo do senhor que acompanhou o debate na cadeira ao meu lado. Dormiu quase de roncar. Com pouco mais de meia hora de conversa no palco, levantou-se e foi embora). Estou mais do que ansioso para ler o novo romance de Edney. Se uma das tarefas da FLIP é despertar curiosidades para novas leituras e autores, o trabalho mais uma vez foi bem feito.

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